segunda-feira, 3 de março de 2014

Uma cultura da falsa originalidade - Roger Scruton


17.12.12
O grande engodo
De tubarões em conserva a músicas compostas de silêncio, as pseudo-idéias e as falsas emoções  tomaram o lugar da verdade e a beleza.
 

Artist Jeff Koons with sculpture. Photo by Bob Adelman/Corbis
O artista Jeff Scoons e sua escultura.  Foto por Bob Adelman/Corbis

A alta cultura é a autoconsciência da sociedade. Ela abrange obras de arte, de literatura, de erudição e de filosofia que estabelecem um quadro de referência comum entre as pessoas cultas. A alta cultura é uma realização precária e perdura apenas se for sustentada por um senso de tradição e apoiada amplamente pelas normas sociais em torno. Quando essas coisas desaparecem, como inevitavelmente acontece, a alta cultura é sobrepujada por uma cultura de falsificações. 

As falsificações dependem, em alguma medida, da cumplicidade entre falsificador e vítima, que conspiram entre si para acreditar no que não acreditam e sentir o que são incapazes de sentir. Existem falsas crenças, falsas opiniões, falsos tipos de experiências. E há também emoções falsas, que são o resultado do rebaixamento das formas e da linguagem em que o verdadeiro sentimento pode se enraizar, o que faz com que as pessoas já não estejam plenamente conscientes da diferença entre o verdadeiro e o falso.  O kitsch é um dos exemplos mais notáveis desse processo. A obra de arte kitsch não é uma resposta ao mundo, mas um produto destinado a substituí-lo. Porém, tanto o fabricante quanto o consumidor tentam se persuadir de que o que sentem na – e por meio da – obra de arte kitsch é algo profundo, importante e real. 

Qualquer um pode mentir. Basta que tenha a intenção de enganar. Mas a falsificação, por sua vez, é uma conquista. Para falsificar algo, você precisa enganar os outros e também a si mesmo. De certo modo, portanto, as falsificações não podem ser intencionais, embora ocorram por meio de ações intencionais. O mentiroso pode fingir que está chocado quando sua mentira é exposta, mas o seu fingimento é apenas a continuação do seu esforço para nos enganar. Os falsificadores ficam realmente chocados quando são expostos, uma vez que criaram em torno de si uma comunidade de confiança, da qual eles mesmos são membros. E parece-me que entender esse fenômeno faz parte da compreensão de como uma alta cultura funciona e como pode ser corrompida.   

Interessamo-nos por alta cultura porque temos interesse pela vida intelectual e confiamos a vida intelectual a instituições porque ela é um benefício social. Mesmo que só algumas pessoas sejam capazes de viver essa vida plenamente, todos nos beneficiamos dos seus resultados, na forma de conhecimento, tecnologia, entendimento jurídico e político, e na forma de obras de arte, literatura e música que evocam a condição humana e também nos reconciliam com ela. Aristóteles vai mais longe e considera a contemplação (theoria) como o propósito último da vida humana e o ócio (schole) como o meio para alcançá-lo. Segundo ele, é apenas na contemplação que as nossas necessidades racionais e nossos desejos são propriamente saciados. Talvez os kantianos preferiram dizer que, na vida intelectual, passamos do mundo dos meios para o mundo dos fins; que, nela, abandonamos os hábitos do raciocínio instrumental e entramos num mundo onde as idéias, os artefatos e as expressões existem por si mesmos, como objetos de valor intrínseco; um mundo onde nos é concedido, enfim, o verdadeiro regresso à morada do espírito. Aliás, esse ponto de vista parece estar subentendido nas Cartas sobre a Educação Estética do Homem (1974) de Friedrich Schiller e intuições similares foram insinuadas pela ideia de Bildung do romantismo alemão: o cultivo da personalidade como objetivo da educação e base para o currículo universitário.

A atividade intelectual tem seus próprios métodos e gratificações. Ela se firma na verdade, na beleza e no bem, os quais definem entre si o escopo da reflexão e os objetivos da inquirição séria. Mas cada um desses objetivos pode ser falseado; e é manifesto que nossas instituições educacionais e culturais, durante a metade do último século, desenvolveram-se no sentido de varrer para fora de si a cultura e o conhecimento genuínos. É importante perguntar por quê. 

A maneira mais notável de permitir que erudição e cultura falsas tomem o espaço destinado à vida intelectual é marginalizar o conceito de verdade. O que pode parecer difícil, a princípio. Afinal, toda afirmação, toda argumentação busca naturalmente chegar à verdade. Como o conhecimento pode chegar até nós, se somos indiferentes à verdade do que lemos? Mas é muito simples. Há uma forma de debate em que se despreza a verdade das palavras do outro, concentrando-se em diagnosticá-las, em descobrir "de onde elas vêm", em revelar as atitudes emocionais, morais e políticas subjacentes a determinada escolha de palavras. A mania de "buscar o que está por trás" das palavras do seu oponente tem origem na teoria da ideologia de Karl Marx, segundo a qual as opiniões, os hábitos de pensamento e as maneiras de ver o mundo são adotados, em situações burguesas, tendo em vista sua função socioeconômica, e não a sua verdade. A idéia de justiça, por exemplo, que vê o mundo em termos de direitos e responsabilidades e que atribui a todos suas propriedades e obrigações, foi mais tarde descartada pelos marxistas como parte da ideologia burguesa. O propósito ideológico do conceito é legitimar "as relações burguesas de produção", que, desde outra perspectiva, parece violar as próprias exigências que o conceito de justiça coloca. Portanto, o conceito de justiça está em conflito consigo mesmo e serve apenas para mascarar uma realidade social que tem de ser antes compreendida em outros termos – de poderes aos quais as pessoas estão submetidas e não de direitos que elas reivindicam.

A teoria marxista da ideologia é extremamente controversa e não somente porque se baseia em hipóteses socioeconômicas que já foram desacreditadas. Ela sobrevive, porém, na obra de Michel Foucault (e de outros intelectuais), notadamente em A Ordem das Coisas (1966) e nos seus ensaios espirituosos sobre as origens das prisões e hospícios. Trata-se de exercícios exuberantes de retórica, cheios de paradoxos e invencionices históricas, que arrastam o leitor com uma espécie de indiferença jocosa pelos padrões da argumentação racional. Onde há um argumento, Foucault vê "discursos"; no lugar da verdade, vê o poder. Na visão de Foucault, todos os discursos obtêm aceitação por expressar, fortalecer e ocultar o poder de quem os sustenta; e aqueles que, de tempos em tempos, percebem esse fato são invariavelmente presos como criminosos ou trancafiados como loucos – um destino do qual o próprio Foucault escapou, inexplicavelmente.
A abordagem de Foucault reduz a cultura a um jogo de poder e o conhecimento a uma espécie de arbitragem na luta incessante entre grupos oprimidos e opressores. A mudança de ênfase no conteúdo da expressão para o poder que se manifestaria através dela, nos conduz a um novo tipo de conhecimento, que ignora completamente as questões da verdade e da racionalidade, porque se permite rejeitá-las como ideológicas em si mesmas.

O pragmatismo do falecido filósofo americano Richard Rorty tem um efeito similar. Ele se volta expressamente contra a idéia de verdade objetiva e oferece uma série de argumentos para que acreditemos que a verdade é algo negociável, que o que importa afinal é de que lado nós estamos. Se uma doutrina é útil para liberar o nosso grupo de um conflito, temos o direito de descartar as alternativas. 

O que quer que se pense de Foucault ou Rorty, não há dúvida de que eles eram escritores inteligentes e eruditos genuínos, cada qual com uma visão peculiar da realidade. Eles abriram caminho para falsificações, mas eles mesmos não as cometeram. A situação dos seus contemporâneos já é bem diferente. Vejamos as seguintes afirmações:

Esta não é apenas sua situação ‘em princípio’ (a que ele ocupa na hierarquia de instâncias em relação a determinada instância: na sociedade, na economia) nem apenas sua situação ‘de fato’ (se, na fase sob consideração, isso é dominante ou subordinado), mas a relação dessa situação de fato com essa relação de princípio, ou seja, a própria relação que torna essa situação de fato uma ‘variação’ da – ‘invariável’ – estrutura, em nominação, da totalidade.

Ou esta:

… é a conexão entre o significante e o significante que permite a elisão em que o significante instala a ausência-de-ser na relação do objeto, usando o valor do ‘referir-se de volta’ que a significação possui, para investi-lo com o desejo que visa à própria falta de suporte.



Essas sentenças são de autoria do filósofo francês Louis Althusser e do psicanalista francês Jacques Lacan, respectivamente. Esses autores emergiram na efervescência revolucionária de 1968 em Paris e alcançaram uma reputação formidável (não só nos EUA), e a literatura acadêmica faz mais referência a eles do que a Kant e Goethe somados. É evidente, porém, que essas afirmações são nonsense. O pretenso conhecimento erudito e a pose de scholar desses autores intimidam o critico e mantêm suas defesas fortificadas contra o ataque da crítica. Eles ilustram um tipo peculiar da Novilíngua acadêmica: cada afirmação enrola-se em torno de si mesma, como uma unha encravada em forma de espiral – dura, feia, apontando para si mesma. 

O pseudo-intelectual nos convida a participar do seu auto-engano e da criação de um mundo de fantasia. Ele é o professor do gênio, nós somos o brilhante pupilo. A falsificação é uma atividade social em que, juntas, as pessoas colocam um véu sobre as realidades indesejadas e incentivam-se umas às outras no exercício de suas capacidades ilusórias. A entrada do pensamento e do conhecimento falsos em nossas universidades, porém, não deveria ser atribuída a algum engodo explicitamente deliberado. Ela decorre da cumplicidade na abertura de território à propagação do nonsense. Esse tipo de nonsense é uma proposta a ser aceita. Ele espera a resposta: ó céus, você está certo, é assim mesmo. E se, para conquistar sua carreira academia, você aprendeu a se valer desses mantras absurdos feitos por impostores, combinando-os numa sintaxe impenetrável, que ludibria tanto quem os compõe quanto quem os lê, você certamente vai indignar-se tudo o que eu disse até agora e não vai querer ler o resto. 

ALGUÉM PODERIA RESPONDER que pouco importa a ascensão do pseudo-conhecimento e da pseudo-filosofia. Que essas coisas podem ser confinadas dentro do seu domicílio natural, que é a universidade, e que fazem pouca diferença para a vida das pessoas comuns. Pois, quando pensamos em alta cultura e sua importância, tendemos a nos voltar, não para a erudição ou para a filosofia, mas para a arte, a literatura e a música – atividades que estão apenas acidentalmente ligadas à universidade e que influenciam a qualidade de vida e os propósitos das pessoas fora da academia.

A arte adquiriu nova relevância durante o período romântico. Uma vez que a religião havia perdido seu apelo emocional, a postura de distanciamento estético ofereceu um caminho alternativo à busca de significado no mundo. Para os românticos, a obra de arte era o resultado de uma experiência única e insubstituível, e encerrava a revelação – refinada pelo esforço individual e pelo gênio artístico – de um significado único em si. O culto do gênio conferiu à arte um novo lugar no centro da vida intelectual, de modo que surgiram disciplinas acadêmicas, como história da arte e musicologia, ao lado da crítica literária e do estudo da poesia. Juntas, essas atividades emprestaram credibilidade às belas-artes enquanto objetos de estudos e foram a porta de entrada para outro tipo de conhecimento – o conhecimento do coração. Dentre todas elas, a conquista mais importante foi o senso da obra de arte enquanto gesto original, uma revelação de uma personalidade única que rompera com todas as formas de expressão convencionais para propiciar uma experiência direta do seu eu interior. 

Portanto, o culto do gênio deu ênfase à originalidade, entendida como a pedra de toque da genuinidade artística – o teste que distinguiria a arte verdadeira da falsa. Embora seja difícil dizer em termos gerais em que consista a originalidade, os exemplos de Ticiano, Rembrandt, Corot, Matise e Gauguin; de JS Bach, Beethoven, Wagner e Schoenberg; de Shakespeare, Diderot, Goethe e Kleist permitiram que os críticos e os artistas compreendessem também essa idéia geral. O que esses exemplos deveriam nos ensinar, porém, é que a originalidade é difícil de ser alcançada: não podemos pegá-la no ar, mesmo que prodígios natos como Rimbaud e Mozart pareçam demonstrar o contrário. A originalidade exige o aprendizado, o trabalho duro, o domínio dos instrumentos, mas, acima de tudo, uma sensibilidade refinada e uma abertura à experiência cujo preço comum é o sofrimento e a solidão. 

O pintor francês Henri Matisse em sua casa, a quinta ‘Le Rêve’, em 1944. Foto de Henri Cartier-Bresson/Magnum

Curiosamente, a pseudo-arte que é endossada, hoje, pelos nossos museus e galerias surgiu do receio falsificar a arte: fugindo de um tipo de falsidade, os artistas criaram outra. Esse fenômeno começou entre os modernistas, que trabalharam na direção contrária da arte sentimental dos seus dias. Os primeiros modernistas – Stravinsky e Schoenberg na música, Eliot e Yeats na poesia, Gauguin e Matisse na pintura, Loos e Voysey na arquitetura – acreditavam que o gosto popular havia se corrompido, que o trivial e o kitsch tinham invadido os domínios da arte e eclipsado suas mensagens. As harmonias tonais haviam sido banalizadas pela música popular; a pintura figurativa havia sido superada pela fotografia; o ritmo e a métrica eram coisas de cartões de natal; as narrativas já haviam sido recontadas inúmeras vezes. Tudo que estava lá fora, no mundo das pessoas ingênuas e irrefletidas, era kitsch. 

O modernismo tentou resgatar a sinceridade, a veracidade, a conquista árdua, da epidemia das emoções artificiais. Ninguém pode duvidar de que os primeiros modernistas obtiveram êxito neste empreendimento, legando-nos grandes obras de arte que mantêm vivo o espírito humano nas novas circunstâncias da modernidade e estabelecem uma continuidade entre as grandes tradições da nossa cultura. Mas o modernismo também cedeu lugar a uma versão banalizada de si: a difícil tarefa de conservar a tradição revelou-se menos atraente do que as formas baratas de lançar desprezo sobre ela.

Desde aqueles dias até hoje, vigora a idéia de que a única forma criação autêntica na grande arte é um tipo de "provocação" à cultura publica. A arte deve ofender, afirmar-se contra o conformismo e o conforto burgueses, que são simplesmente outros nomes para kitsch e clichê. O resultado, porém, é que a ofensa em si mesma se torna um clichê. Se o publico se torna tão imune ao choque que só um tubarão morto em formol despertará um breve espasmo de indignação, então o artista tem de produzir esse tubarão – ao menos é um gesto autêntico. Em vez da "tradição do novo", do falecido crítico de arte americano Harold Rosenberg, nós temos agora o "clichê da transgressão" – uma repetição do que pretendia ser único. 

Os grandes modernistas tinham uma consciência muito aguda da necessidade de construir para o público cujas expectativas eles haviam frustrado, pontes que o ligassem a seu passado. Eles acabaram – como Eliot, Picasso e Stravinsky – amados por aqueles que prezam pela alta cultura tradicional. Mas eles começaram a se tornar difíceis de compreender – e de propósito – para que pudesse existir uma defesa eficaz do terreno elevado da arte contra o lodaçal do sentimento popular. Daí o dilema que lhes foi colocado pelo crítico de arte americano, Clement Greenberg, no ensaio Avant-Garde and Kitsch, de 1939, que fez seu nome. A arte, para ser genuína, devia estar à frente do seu tempo; qualquer descuido significaria uma queda no pântano das falsas emoções e dos efeitos comerciais. 

E porque se tornaram difíceis de compreender, cresceu em torno desses artistas uma classe de críticos e empresários que oferecia iniciação ao culto modernista. Essa classe de empresários começou a fomentar o incompreensível e o ultrajante como algo normal, por receio de que o publico considerasse os seus serviços inúteis. O que alimentou um novo tipo de personalidade, determinada a mudar conforme a época, compreendendo cada vez menos o que a época podesse de fato significar. Não é fácil angariar o status de artista original, mas, numa sociedade em que a arte é reverenciada como a mais alta realização cultural, as recompensas são enormes. Daí porque há um incentivo para falseá-la, para formar um círculo de cúmplices: os artistas posando como criadores de avanços formidáveis, os críticos posando como os examinadores profundos da verdadeira vanguarda. Observamos esse fenômeno na simbiose entre Greenberg e o impressionismo abstrato de Willem de Kooning.

Outro exemplo pertinente é o compositor John Cage. Com uma habilidade singular para a autopromoção, embora sem qualquer demonstração prévia de competência musical, Cage fez sua reputação com a peça célebre 4’33” (1952) – um evento onde de o pianista, em trajes apropriados para concerto, permanece sentado no piano, em silêncio, durante exatos 33 segundos. Com base nessa e em algumas brincadeiras similares, Cage se apresentou como um compositor original, "colocando em xeque" toda a tradição de concertos musicais do ocidente. Os críticos se apressaram em apoiar a sua elevada autoestima, na esperança de partilhar da glória de ter descoberto um gênio novo e original. O fenômeno Cage foi rapidamente consagrado como parte da cultura, apto a obter subsídios das instituições de cultura e recrutar uma serie de imitadores -- para os quais, no entanto, já era tarde demais para causar uma agitação, como Cage causara sem fazer nada. 

Episódios semelhantes ocorreram nas artes visuais, começando com o urinol de Marcel Duchamp, passando pela serigrafia e pelas caixas Brillo de Andy Warhol até chegar aos tubarões e  vacas em conserva de Damien Hirst. Em cada caso, os críticos juntaram-se em torno da novidade, como galinhas cacarejando em volta de um ovo imperscrutável, e o embuste foi destinado ao publico com todos os aparatos requeridos para ser aceito como algo real. Tão poderoso é o ímpeto para a falsificação coletiva, que agora se exige de fato que os finalistas do Prêmio Turner na Grã-Bretanha produzam algo que jamais alguém pensaria ser arte, se não lhe dissessem. Por outro lado, o tipo de gesto original introduzido por Duchamp não pode ser realmente repetido – como as piadas, ele só pode ser feito uma vez. Daí o fato de encontramos um hábito de falsificação que está tão profundamente envolto em seus próprios imperativos que qualquer juízo a respeito estaria incorreto, exceto o juízo de que o que está diante de nós é a "coisa real", e não uma falsificação completa – juízo este que, por sua vez, seria falso. 

Para se convencer de que são verdadeiros progressistas, marchando na vanguarda da história, os novos empresários se cercam de pessoas como eles. Um empresário promove outro para comissões que sejam relevantes para sua posição, e espera ser promovido em troca. Assim surgiu o establishment contemporâneo – o círculo auto-suficiente de críticos e promotores que forma a espinha dorsal de nossas instituições oficiais e semioficiais de cultura. Eles negociam "originalidade", "transgressão" e "aberturas de novos caminhos". Mas esses termos são clichês, como o são as coisas que eles costumam enaltecer. 

NÃO SÃO APENAS as convicções e as ações que podem ser falseadas. A falsa emoção tem desempenhado um papel decisivo no desenvolvimento da arte em tempos recentes. A emoção real não admite simulacros e nunca é objeto de barganha ou de troca. A falsa emoção procura descartar o custo sentimental ao mesmo tempo que é beneficiada por ele. O amante sentimental que desfruta de sentimentos calorosos e da auto-afirmação que resulta do seu amor é também aquele que se dirige rapidamente a outro objeto assim que o primeiro se mostre muito penoso – talvez porque ele ou ela desenvolveu alguma doença debilitante, porque se tornou velho, cansado e pouco atraente.

O amor transferido não é amor de verdade e o mesmo se aplica a outras emoções. Tudo isso foi esclarecido por Oscar Wilde em "De Profundis" (1897), sua grande acusação contra o sentimentalista Lord Alfred Douglas, que o havia arruinado.

A arte kitsch, por sua vez, tem como objetivo colocar a emoção à venda: ela funciona como funcionam as propagandas, criando um mundo de fantasia, onde tudo, inclusive o amor, pode ser comprado, onde toda emoção é simplesmente um item numa serie infinita de substitutos. O beijo clichê, o sorriso de olhar inocente, a sentimentalidade dos cartões de natal: todos anunciam o que não poderia ser anunciado sem que deixassem de sê-los. Eles não comprometem o vendedor a nada. Podem ser vendidos ou comprados sem custos emocionais, pois, sendo produtos da fantasia, já não existem na forma de compromisso. 

O efeito da revolução modernista nas artes foi acusar aqueles que tentaram ressuscitar a maneira antiga de fazer as coisas – a pintura figurativa, a música tonal, a arquitetura clássica – de retrocederem na disciplina autêntica da arte. É claro, você pode fazer gestos antigos; mas você não pode expressá-los seriamente. E se você o fizer, no entanto, o resultado será o kitsch – padronizações, mercadorias de baixo custo, produzidas sem esforço e consumidas sem pensar, do mesmo modo que a musica popular atual.

O receio de se rebaixar ao kitsch transformou o modernismo em algo rotineiro.  Ao posar como modernista, o artista dá um sinal facilmente perceptível de sua autenticidade. Mas o resultado é um clichê de outro tipo. Essa é uma das razões para o surgimento de um empreendimento artístico totalmente novo que alguns chamam de "pós-modernismo", mas que poderia ser mais bem descrito como "kitsch preventivo".

Tendo reconhecido que o rigor modernista não era mais aceitável, os artistas deixaram de evitar o kitsch e passaram a aceitá-lo, tal como Andy Warhol, Allen Jones e Jeff Koons. O pior é ser culpado de produzir kitsch involuntariamente; bem melhor é produzi-lo deliberadamente, pois, neste caso, não se trata propriamente de kitsch, mas de uma paródia sofisticada. (A intenção de produzir um kitsch "de verdade" é irrealizável, como a intenção de agir sem intenções. A ingenuidade deliberada é, de fato, faux naïf.) O kitsch preventivo coloca o kitsch atual entre aspas, e espera, deste modo, salvar suas credenciais artísticas. O mesmo fenômeno pode ser discernido na música, com cifras repetidas baseadas em acordes tonais simples que encontramos em Philip Glass e, em certa medida, Steve Reich. Em resposta ao argumento de que a tríade é um clichê, alguns compositores tomaram posse da tríade e a repetiram até que o crítico pudesse ter certeza de que eles estão conscientes de que é um clichê, e de que eles colocaram a própria atividade da crítica entre aspas. 

No lugar do rigor modernista, surge uma espécie de falsificação institucionalizada. As galerias públicas e as grandes coleções estão repletas da desordem pré-digerida da vida moderna. Tal arte evita a sutileza, a alusão e a insinuação, e no lugar dos ideais concebidos em ornamentos ela oferece verdadeiros lixos acompanhados de aspas atenuantes. No fim das contas, ela é indiscernível da propaganda – com a única diferença de que não tem nenhum produto para vender além si mesma.

O kitsch preventivo oferece falsas emoções e, ao mesmo tempo, finge rejeitar o próprio objeto que  oferece. O artista finge se levar a sério, os críticos fingem julgar seu produto e o establishment modernista finge promovê-lo. Depois de todo esse fingimento, alguém que não percebe a diferença entre o anúncio (que é um meio) e a arte (que é um fim) decide que deve comprar aquilo. Apenas nessa altura a cadeia de fingimentos chega ao fim e o verdadeiro valor da arte pós-moderna se mostra – isto é, o seu valor de troca monetária. Mesmo aí, porém, o fingimento ainda é importante. O comprador deve acreditar que o que ele está comprando é arte verdadeira e que, portanto, tem valor intrínseco, que pode ser negociado a qualquer preço. Caso contrário, o preço refletiria o fato óbvio de que qualquer um – quiçá o comprador – poderia ter falseado um produto como aquele. A essência das falsificações é que são simulacros de si mesmas, avatares do infinito mise-en-abyme que está por trás das mercadorias.

O que está exatamente em jogo na escolha entre o verdadeiro e o falso no domínio da cultura? Podemos continuar a falseá-la infindavelmente? Isso seria preferível àquelas vidas autenticas e sinceras em que as paixões humanas florescem em sua plenitude descontrolada e tantas vezes viciosa? Talvez o destino da cultura seja nos introduzir todos em um sonho de Disneylândia sempre que o perigoso desejo por realidades nos perpassar por dentro. Quando observamos as instituições de cultura nas democracias de hoje, podemos muito bem nos sentir tentados a pensar que a simulação é a sua finalidade, e que é uma finalidade buscada para o bem de todos. 

A cultura, porém, é algo importante. Sem ela não nos educamos emocionalmente. E há consequências da falsa cultura que são comparáveis às consequências da corrupção na política. Num mundo constituído de falsificações, o interesse publico é constantemente sacrificado em prol de uma fantasia privada e as verdades cruciais permanecem abandonadas, sem exame, e desconhecidas. Mas provar esse ponto é uma tarefa difícil, de fato, e depois passar a vida inteira tentando, eu percebi que estava só no começo.


*Essa tradução foi feita por mim, Hugo. E foi modificada em alguns trechos depois que a confrontei com outra tradução deste mesmo ensaio, feita pelo meu amigo Klauss Tofanetto, ao qual agradeço imenso.

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

Arte, Beleza e Julgamento - R. S.


American Spectator [1]
Julho/Agosto de 2007
O bom gosto é tão importante na estética quanto no humor.


UM SÉCULO ATRÁS MARCEL DUCHAMP assinou um urinol com o nome “R. Mutt”, intitulou-o “A Fonte” e o expôs como obra de arte. Imediatamente, a piada de Duchamp precipitou uma indústria intelectual dedicada a responder a questão “O que é arte?” A literatura produzida por essa indústria é tão vazia quanto as infindáveis imitações do gesto de Duchamp. No entanto, ela deixou um resíduo de ceticismo. Se tudo pode ser considerado arte, então a arte deixa de ter um propósito. Tudo o que resta é o fato curioso, mas infundado, de que alguns parecem olhar para algumas coisas, e outros, para outras coisas.  Quanto à sugestão de que há um esforço da crítica que busca por valores e monumentos duradouros do espírito humano, ela é descartada como algo que depende de uma concepção de obra de arte que já foi purificada pelo dreno da fonte de Duchamp.

O argumento é avidamente abraçado, porque parece libertar as pessoas do fardo da cultura, dizendo-lhes que todas aquelas veneráveis obras primas podem ser ignoradas impunemente, que a TV é de fato ‘tão boa quanto’ Shakespeare e que o techno-rock é pode ser equiparado a Brahms, uma vez que nada é melhor do que nada e toda proclamação de valor estético é vazia. O argumento, portanto, está de acordo com as formas elegantes de relativismo cultural, e define o ponto a partir do qual os cursos universitários de estética tendem começar - e onde tantas vezes terminam.

Seria muito útil fazer, aqui, uma comparação com as piadas.  É difícil circunscrever a categoria das piadas, assim como na classificação de obras de arte. Qualquer coisa pode ser uma piada, se alguém o afirma. Uma piada é um artefato produzido para ser objeto de riso. Ela pode falhar ao tentar exercer sua função, caso em que é uma piada que ‘quebra a cara’. Ou ela pode desempenhar a sua função ofensivamente, caso em que ela é uma piada ‘de mau gosto’. Mas nenhuma das duas sugere que a categorização de piadas é arbitrária, ou que não existem distinções entre piadas boas e ruins. Tampouco sugerem que não há lugar para a crítica de piadas, ou para uma educação moral em que o senso de humor decente é um objetivo a ser alcançado. Na verdade, a primeira coisa que você deve aprender, ao ter em consideração as piadas, é que o urinol de Marcel Duchamp foi uma delas – muito boa num primeiro momento, brega em meados do século 20, e totalmente estúpida nos dias de hoje.

Como as piadas, as obras de arte têm uma função. Elas são objeto de interesse estético. Elas podem desempenhar essa função de modo recompensador, oferecendo alimento para o pensamento e elevação para o espirito, ganhando para si um público leal que retorna até elas para obter consolação ou inspiração. Tais obras podem desempenhar seu papel de um modo que seja julgado ofensivo ou francamente aviltante. Ou elas podem falhar completamente em nos oferecer o interesse estético que estão solicitando.

AS OBRAS DE ARTE que jamais esquecemos caem nas primeiras duas categorias: a consolação e o aviltamento. Aquelas que são um fracasso total desaparecem da memória pública. E é realmente importante o tipo de arte a que você se apega, que você inclui em seu tesouro de símbolos e alusões, que você traz em seu coração. O bom gosto é tão importante na estética quanto no humor, e, na verdade, o gosto é que está em jogo, aqui. Se os cursos universitários não começarem a partir dessa premissa, os alunos terminarão seus estudos de arte e cultura tão ignorantes quanto começaram.

É verdade, no entanto, que as pessoas já não veem as obras de artes como objetos de julgamento ou como expressões da vida moral. Cada vez mais, muitos professores de humanidades concordam com a opinião inculta dos seus alunos recém-chegados de que não há uma distinção entre o bom gosto e o mau gosto. Mas imagine alguém dizendo a mesma coisa sobre o humor. Jung Chand e Jon Halliday recontam uma das raras ocasiões em que o jovem Mao Tse-tung desatou a rir: foi no circo, quando o equilibrista caiu do alto da corda bamba para a sua morte. Imagine um mundo em que as pessoas rissem apenas das desgraças dos outros. O que um mundo como esse teria em comum com o mundo de Tartufo de Moliere, As Bodas de Fígado de Mozart, Don Quixote de Cervantes, ou Tristam Shandy de Laurence Sterne? Nada, exceto o fato do riso. Tal mundo seria degenerado, um mundo que a bondade humana já não mais encontraria confirmação no humor, em que um aspecto inteiro do espírito humano teria se tornado atrofiado e grotesco.

Imagine agora um mundo em que as pessoas só demonstrassem interesse por caixas Brillo, por urinóis com assinaturas, por crucifixos mergulhados na urina, ou por objetos similares, retirados dos resíduos da vida diária e colocados em exposição com uma espécie de intenção satírica – em outras palavras, o programa cada vez mais comum das exposições oficiais de arte moderna na Europa e nos EUA. O que esse mundo teria em comum com o de Duccio, Giotto, Velazquez, ou mesmo Cézanne? Claro, haveria fato de que os objetos seriam colocados em exibição, e o fato de que os veríamos em espetáculos estéticos. Mas este seria um mundo degenerado, onde as aspirações humanas já não encontrariam mais sua expressão artística, onde já não forjaríamos, para nós mesmos, imagens do ideal e do transcendente, e onde estudaríamos a ruína humana, e não a alma. Nesse mundo, um aspecto inteiro do espírito humano – o aspecto estético – teria se tornado atrofiado e grotesco. Pois, se temos aspirações em relação à arte, quando essa aspiração acaba, o mesmo ocorre com a arte.

Parece-me que agora o espaço público da nossa sociedade começou, de fato, a se render ao tipo de degradação que eu tenho descrito. O nosso espaço público foi tomado por uma cultura que não deseja educar nossa percepção, mas capturá-la, não para enobrecer a vida humana, e sim para banalizá-la. Eu só posso oferecer uma resposta imperfeita de por que isso é assim. Mas que isso é assim é certamente inegável. Observe a arte vigente nas sociedades modernas – a arte que acaba sendo exposta em museus ou em pedestais públicos, a arquitetura que é autorizada por órgãos públicos, ou mesmo a música que desfruta dos favores da máquina de subsídios públicos – e você encontrará, frequentemente, ou kitsch burlesco, ou gestos deliberadamente hostis desafiando as tradições que fizeram com que a arte fosse diga de ser amada. A maior parte da nossa arte pública é destituída tanto do amor quanto da humildade que provém dele. 

Disso não podemos concluir que os gostos e os juízos são coisas do passado. Nem que a arte tenha sido banida das nossas vidas ou que tenha perdido seu significado. Tudo o que podemos deduzir é que a arte está sendo conduzida para fora da área pública. Você já não pode mais encontrá-la em algum lugar lá fora, e sim apenas aqui, em foro íntimo. A arte está sendo privatizada, enquanto cada um de nós se esforça para se manter fiel a uma visão da beleza que já não confia em compartilhar fora do círculo de amigos. Uma das causas desse fenômeno é a cultura democrática, que é avessa a julgamentos de qualquer tipo, em especial ao julgamento dos gostos. A atitude predominante é a de que você tem o direito de ter suas preferências, mas não o direito de impô-las a mim.

A maior parte dos estudantes americanos chegam ao colégio com essa atitude, e ficam perplexos ao descobrir que existem pessoas que não apenas discordam das suas preferências musicais, artísticas e literárias (para não falar em vestimentas, uso da linguagem e relações sociais), mas na verdade as olham com desprezo, como inferiores a determinado padrão conceituado. Isso é algo que é difícil de aceitar, e é uma das causas da adesão generalizada ao relativismo cultural em suas várias formas -- uma vez que o relativismo cultural coloca a experiência estética completamente acima do mundo do julgamento, e portanto neutraliza o valor do bom gosto. E a preferência pela arte que dessacraliza a imagem humana ou o espaço público está conectada com o temor de emitir julgamentos estéticos. Ao defender o que é deliberadamente desagradável e detestável, você torna o julgamento ridículo: tanto o meu quanto o seu.

Parece-me, contudo, que a atitude democrática está em conflito com si mesma. É impossível viver como se não existissem valores estéticos, quando se vive uma vida real entre pessoas reais. As maneiras, as roupas, os discursos e os gestos -- tudo exige uma atenção cuidadosa à aparência das coisas. Em cada esfera da vida humana, desde a preparação da mesa até o discurso fúnebre, as escolhas estéticas são necessárias e são observadas. Sem elas não podemos resolver o enorme problema de coordenação que surge quando milhares de indivíduos se amontoam num espaço público. Deste modo, na cultura democrática, o julgamento estético começa a ser experimentado como uma aflição. Ele impõem um fardo insustentável, algo que devemos acatar, um mundo de ideais e aspirações que está em forte conflito com a indecência e a imperfeição de nossa vidas improvisadas. Ele está pendurado sobre os nossos ombros como uma coruja, enquanto nós tentamos esconder nossos animais roedores domésticos em nossas roupas. A tentação é voltar-lhe as costas e mandá-lo embora.

Eis outra razão para o desejo de dessacralização. Este é um desejo de voltar o juízo estético contra si mesmo, de modo que já não pareça um julgamento sobre nós. A todo momento notamos isso nas crianças -- o prazer por barulhos, palavras, alusões desagradáveis que ajudam-nas a se distanciar do mundo adulto que as julga, e cuja autoridade elas desejam negar. Esse refúgio habitual das crianças em relação ao fardo do julgamento adulto tem se tornado o refúgio dos adultos em relação à sua cultura. Ao usar a arte como um instrumento de dessacralização, eles neutralizam pretensões da arte: ela perde sua autoridade, e eles se tornam cúmplices na conspiração contra os ideais.


[1] http://spectator.org/articles/44944/art-beauty-and-judgment

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

Ritos de Passagem – Roger Scruton

The American Spectator [1]
Outubro de 2011
Os tumultos ocorridos nas cidades britânicas durante o verão foram enquadrados pelos nossos formadores de opinião nas categorias fáceis que regem o seu pensamento. Os escritores de esquerda citaram a escassez urbana, a pobreza e o racismo – em outras palavras, fatores pelos quais os arruaceiros não podem ser responsabilizados. Os escritores de direita apontaram para o multiculturalismo, para o engodo do sistema de bem-estar social e para a ruína da vida familiar – de novo, fatores pelos quais os desordeiros não podem ser responsabilizados. Porém, o fato é que os responsáveis pelos motins foram os seus próprios participantes. Provocar tumultos é natural ao ser humano, e é um fato freqüentemente observado em nossa selvageria inerente. Os jovens são particularmente propensos a criar confusão: e nas condições de caçadores/recoletores [hunter-gatherer] é de se supor que, entre dormir, copular e comer, eles não façam muito mais que isso. Os jovens aderem à arruaça tão logo haja algo para ganhar com ela, e sempre que não haja nada sério a perder. O que precisa ser explicado não é o fato de que eles provoquem tumultos, e sim o fato muito mais extraordinário de que em geral não o façam. O que, ao longo dos séculos, continha a energia dos nossos jovens e garantia que eles respeitassem a vida e a propriedade dos outros?

A resposta é "civilização". Mas essa resposta, de certo modo, repete a pergunta. O que, exatamente, gera uma civilização? O que eleva o ser humano acima de sua condição selvagem e lhe confere respeito pela ordem, consideração pelos outros e hábitos de obediência sem os quais a pretensão da humanidade por um lugar especial em nosso planeta não seria melhor do que a pretensão de ratos, sapos ou mosquitos?

No século 19 e no início do 20, os antropólogos tiveram a oportunidade de observar sociedades que não tinham sequer escrita, nem instituições formais de governo, mas que possuíam algo do qual estão privados a multidão, o bando e a turba, isto é, a perpetuidade. Aquelas sociedades “primitivas” subsistiam de geração em geração, e cada uma delas absorvia os costumes e reconhecia as obrigações que lhe eram transmitidas por seus pais, preparando-se inconscientemente para passar, por sua vez, aqueles benefícios aos seus filhos. Embora houvesse disputas e rivalidades, e embora a violência irrompesse de vez em quando e às vezes existisse em formas ritualizadas e reiteradas, a condição normal era a de associação pacífica, em que cada membro da tribo se sentia ligado a todos os outros numa rede de obrigações que não podia ser transgredida impunemente. Os muitos “eus” estavam integrados em um único “nós”, e o que tornou isso possível, mais do que qualquer outro fator, foi o interesse da tribo pelas transições críticas das quais dependia sua perpetuidade. Assim como na vida dos pais, cada nascimento era reconhecido como um acontecimento na vida da tribo. A transição da infância para a responsabilidade adulta não era, como agora, uma realização individual, a ser alcançada de qualquer forma ou de modo algum, mas um interesse público, que receberia um reconhecimento cerimonial. Na cerimônia de iniciação, as obrigações deviam ser solenemente assumidas e o interesse da tribo admitido como maior que o de qualquer indivíduo. Do mesmo modo, o casamento era um ritual público; e quando, finalmente, o indivíduo era preparado para descansar entre seus antepassados, essa passagem também era acentuada como uma preocupação de todos.

Os ritos de passagem (como Arnold van Gennep os chamou mais de cem anos atrás) ainda existem aqui e ali, em nosso mundo, notadamente em sociedades que não foram atingidas pelas comunicações modernas. Mas ninguém pode negar que eles estão desaparecendo da Europa em geral e da Grã-Bretanha em particular. Quando os comentaristas de direita se queixam do colapso da família, eles não querem dizer que as casas de família são substituíveis e conturbadas. Elas são assim desde o início da civilização. Eu cresci numa casa de família. O que os comentaristas querem dizer, ou deveriam dizer, é que a instituição crucial da qual as crianças dependem para sua segurança, isto é, o casamento, está desaparecendo. Filhos fora do casamento são agora a norma na Europa, e as únicas pessoas que procuram se casar logo são os homossexuais, ansiosos por um reconhecimento que está perdendo rapidamente o seu significado. A ausência deste importante rito de passagem significa que o nascimento, também, é uma questão privada, não mais um acontecimento na vida de uma comunidade, mas uma paixão pessoal da mãe, que será ajudada em seu calvário (pelo qual ela deveria escolher passar) pelo mesmo sistema de bem-estar social que se encarregará da criança.

Mas talvez a perda mais importante é a do rito de passagem para fora da infância. Quando o indivíduo alcançava certa idade, a comunidade lhe oferecia uma recepção. Em resposta a essa acolhida, o adolescente assumia os benefícios e encargos da participação na vida adulta: a maturidade deixava de ser um fenômeno biológico e era reformulada como uma dádiva social. Em sociedades complexas como a nossa, essa transformação não era marcada por uma cerimônia única, embora as antigas cerimônias ainda existissem em alguns lugares. Essa transformação era marcada por inúmeros empreendimentos de pequena escala: ofertas locais para tornar-se membro e delegações de responsabilidade que eram vistas com orgulho tanto por aqueles que as recebiam e quanto pelas pessoas que as administravam.

Times, tropas de escoteiros, escolas e todo tipo de clube ofereciam seus ritos locais de passagem; Bar-Mitzvah, Crisma e Primeira Comunhão eram ícones religiosos que carregavam esse mesmo sentido. De inúmeras maneiras, os adultos mantinham o limite entre a infância e a maturidade e apresentavam a maturidade em termos que envolviam toda a comunidade e que poderiam ser aceitos apenas mediante o reconhecimento do dever de obediência à comunidade nas coisas que mais lhe importavam.

ACREDITO QUE O QUE EU ESTOU DIZENDO AQUI é simples senso comum. Contudo, se for esse o caso, por que deveríamos nos surpreender se nossas sociedades perdessem o dom precioso da perpetuidade, num tempo em que já não existem mais as grandes transições pelas quais seus membros poderiam ser reconhecidos publicamente? As crianças tropeçam, hoje, na vida adulta, despreparadas e indefesas. Pouco ou nada as protege do espetáculo da desordem adulta. Os objetivos de vida tradicionais, como o casamento e a família, já não lhe são mais apresentados como etapas normais de um modo de vida. E a proliferação de imagens e tentações sexuais destrói tanto a inocência da infância quanto a responsabilidade da vida adulta, de modo que a fronteira entre as duas é apagada. Em certo sentido (muito verdadeiro), as crianças são deixadas à sorte, para que se defendam por si mesmas, para que forjem,  fora das ruínas que testemunham, o único tipo de comunidade que pode  auxiliá-las em tal situação -- que é o bando.

A essência do bando é que ele vive numa relação antagônica com o seu meio. O mundo a seu redor pertence aos outros, àqueles que não têm direito de participação no grupo e cuja propriedade e estilo de vida os demarca como alienígenas. Deste modo, o bando emerge em um mundo que já está fechado para ele, e deve fazer algo para tornar sua presença conhecida. (Várias são as avenidas que indicam tal presença.) Uma maneira é vandalizar o espaço público e gravar nele um símbolo rival. Esse é o verdadeiro sentido do grafite, que são assinaturas de gangues, destinadas tanto a desfigurar o espaço público quanto a apropriar-se do seu significado.

Outros ritos de passagem artificiais estão disponíveis. A confrontação violenta com outras hordas é um deles, e nas cidades britânicas essa forma de iniciação é bastante comum, o que acarretou, nos últimos anos, muitas mortes por facadas. Os motins também podem ser ritos de passagem -- uma maneira de "aderir" que oferece oportunidade se sentir membro e libertado, e que realiza o desejo de vingança contra um mundo que até então não havia oferecido nada além da exibição da propriedade alheia. Eles não costumam se intensificar na medida a que temos assistido na Grã-Bretanha neste último verão. Mas o tumulto está no pano de fundo da vida adolescente, como sabem todos os que conhecem alguém que vive perto de uma de nossas escolas do centro da cidade.

Não é apenas na Grã-Bretanha que esses efeitos foram notados. Na Alemanha, cada espaço público foi desfigurado pelo grafite e pouco ou nada é feito aos responsáveis -- afinal de contas, a punição pertence à forma de vida autoritária que os alemães estão tentando com tanta dificuldade esquecer. Ao mesmo tempo, essa permissão para destruir não satisfaz a fome dos jovens alemães por participação grupal ou a sua raiva contra um mundo que tem falhado em propiciar essa participação. Toda sexta-feira à noite, durante os últimos quatro anos, automóveis foram incendiados em Berlim, e um artigo em Die Welt am Sonntag comparou recentemente a situação na capital germânica com a de Tottenhan, onde as arruaças britânicas começaram. E não pensemos que a obsessão germânica com o neonazismo é absurda. Prive os jovens dos ritos de passagem para dentro da ordem social e eles vão buscar um rito de passagem para fora dela. Isso, no meu ponto de vista, é a verdadeira explicação para o caso de assassinato em massa perpetrado pelo norueguês Breivik, um homem cujo pai o havia rejeitado, que não encontrou nenhuma sociedade que o incluísse e que despejou sua vingança em jovens que pareciam estar se divertindo com o próprio reconhecimento grupal que lhe faltava.

Uma coisa é reconhecer a necessidade de ritos de passagem, outra é propor uma maneira de redescobri-los. Até agora os esforços dos políticos na Europa e nos Estados Unidos foram negativos. O resultado das políticas atuais foi subsidiar nascimentos fora do casamento, transformar o casamento num contrato de coabitação e conduzir a religião, que é a verdadeira guardiã dos ritos de passagem, para fora da esfera pública. Essas políticas são abraçadas com a melhor das intenções, mas mostram uma clara indiferença para com o que sabemos acerca da natureza humana. O camnho de volta à perpetuidade será longo e doloroso, porém, é manifesto, sem dúvida, que o primeiro passo que deve ser dado é parar de subsidiar as soluções alternativas.



















Nota: o título do artigo original é Riots of Passage, ou seja, algo como Motins (ou Arruaças) de Passagem, o que permite uma espécie de trocadilho com Ritos de Passagem. Mas eu não consegui traduzi-lo, criativamente, para o português. Por isso, deixei apenas Ritos de Passagem.

Texto original: