The American Spectator [1]
Outubro de 2011
Os tumultos ocorridos nas cidades britânicas
durante o verão foram enquadrados pelos nossos formadores de opinião nas
categorias fáceis que regem o seu pensamento. Os escritores de esquerda
citaram a escassez urbana, a pobreza e o racismo – em outras palavras,
fatores pelos quais os arruaceiros não podem ser responsabilizados. Os escritores
de direita apontaram para o multiculturalismo, para o engodo do sistema de bem-estar
social e para a ruína da vida familiar – de novo, fatores pelos quais os
desordeiros não podem ser responsabilizados. Porém, o fato é que os
responsáveis pelos motins foram os seus próprios participantes.
Provocar tumultos é natural ao ser humano, e é um fato freqüentemente observado
em nossa selvageria inerente. Os jovens são particularmente propensos a criar
confusão: e nas condições de caçadores/recoletores [hunter-gatherer] é de se supor que, entre dormir,
copular e comer, eles não façam muito mais que isso. Os jovens aderem à arruaça
tão logo haja algo para ganhar com ela, e sempre que não haja nada sério a perder. O que precisa ser explicado não é o fato de que eles provoquem tumultos, e sim o fato muito mais extraordinário de que em geral não o
façam. O que, ao longo dos séculos, continha a energia dos nossos jovens e
garantia que eles respeitassem a vida e a propriedade dos outros?
A resposta é "civilização". Mas essa
resposta, de certo modo, repete a pergunta. O que, exatamente, gera uma
civilização? O que eleva o ser humano acima de sua condição selvagem e lhe
confere respeito pela ordem, consideração pelos outros e hábitos de obediência
sem os quais a pretensão da humanidade por um lugar especial em nosso planeta
não seria melhor do que a pretensão de ratos, sapos ou mosquitos?
No século 19 e no início do 20, os antropólogos tiveram a
oportunidade de observar sociedades que não tinham sequer escrita, nem
instituições formais de governo, mas que possuíam algo do qual estão privados a multidão, o bando e a turba, isto é, a perpetuidade.
Aquelas sociedades “primitivas” subsistiam de geração em geração, e cada uma delas absorvia os costumes e reconhecia as obrigações que lhe eram transmitidas
por seus pais, preparando-se inconscientemente para passar, por sua vez, aqueles
benefícios aos seus filhos. Embora houvesse disputas e rivalidades, e embora
a violência irrompesse de vez em quando e às vezes existisse em formas ritualizadas e reiteradas, a condição normal era a de
associação pacífica, em que cada membro da tribo se sentia ligado a todos os
outros numa rede de obrigações que não podia ser transgredida impunemente. Os
muitos “eus” estavam integrados em um único “nós”, e o que tornou isso
possível, mais do que qualquer outro fator, foi o interesse da tribo pelas transições críticas das quais dependia sua perpetuidade. Assim como na vida
dos pais, cada nascimento era reconhecido como um acontecimento na vida da
tribo. A transição da infância para a responsabilidade adulta não era, como
agora, uma realização individual, a ser alcançada de qualquer forma ou de modo
algum, mas um interesse público, que receberia um reconhecimento cerimonial. Na
cerimônia de iniciação, as obrigações deviam ser solenemente assumidas e o
interesse da tribo admitido como maior que o de qualquer indivíduo. Do mesmo modo, o casamento era um ritual
público; e quando, finalmente, o indivíduo era preparado para descansar entre
seus antepassados, essa passagem também era acentuada como uma preocupação de
todos.
Os ritos de passagem (como Arnold van Gennep os chamou mais de cem
anos atrás) ainda existem aqui e ali, em nosso mundo, notadamente em sociedades
que não foram atingidas pelas comunicações modernas. Mas ninguém pode negar que
eles estão desaparecendo da Europa em geral e da Grã-Bretanha em particular.
Quando os comentaristas de direita se queixam do colapso da família, eles não
querem dizer que as casas de família são substituíveis e conturbadas. Elas são assim
desde o início da civilização. Eu cresci numa casa de família. O que os comentaristas
querem dizer, ou deveriam dizer, é que a instituição crucial da qual as
crianças dependem para sua segurança, isto é, o casamento, está desaparecendo.
Filhos fora do casamento são agora a norma na Europa, e as únicas pessoas que
procuram se casar logo são os homossexuais, ansiosos por um
reconhecimento que está perdendo rapidamente o seu significado. A ausência
deste importante rito de passagem significa que o nascimento, também, é uma
questão privada, não mais um acontecimento na vida de uma comunidade, mas uma
paixão pessoal da mãe, que será ajudada em seu calvário (pelo qual ela deveria
escolher passar) pelo mesmo sistema de bem-estar social que se encarregará da
criança.
Mas talvez a perda mais importante é a do rito de passagem para
fora da infância. Quando o indivíduo alcançava certa idade, a comunidade lhe oferecia uma recepção. Em resposta a essa acolhida, o adolescente assumia
os benefícios e encargos da participação na vida adulta: a maturidade deixava de
ser um fenômeno biológico e era reformulada como uma dádiva social. Em sociedades
complexas como a nossa, essa transformação não era marcada por uma cerimônia
única, embora as antigas cerimônias ainda existissem em alguns lugares. Essa transformação era marcada por inúmeros empreendimentos de pequena escala: ofertas locais para
tornar-se membro e delegações de responsabilidade que eram vistas com orgulho
tanto por aqueles que as recebiam e quanto pelas pessoas que as administravam.
Times, tropas de escoteiros, escolas e todo tipo de clube
ofereciam seus ritos locais de passagem; Bar-Mitzvah, Crisma e Primeira
Comunhão eram ícones religiosos que carregavam esse mesmo sentido. De inúmeras maneiras, os adultos mantinham o limite entre a infância e a maturidade e
apresentavam a maturidade em termos que envolviam toda a comunidade e
que poderiam ser aceitos apenas mediante o reconhecimento do dever de
obediência à comunidade nas coisas que mais lhe importavam.
ACREDITO QUE O QUE EU ESTOU DIZENDO AQUI é simples senso comum.
Contudo, se for esse o caso, por que deveríamos nos surpreender se nossas
sociedades perdessem o dom precioso da perpetuidade, num tempo em que já não existem mais as grandes
transições pelas quais seus membros poderiam ser reconhecidos publicamente? As crianças tropeçam, hoje, na vida adulta, despreparadas e indefesas. Pouco ou nada as protege do espetáculo da desordem
adulta. Os objetivos de vida tradicionais, como o casamento e a família, já não
lhe são mais apresentados como etapas normais de um modo de vida. E
a proliferação de imagens e tentações sexuais destrói tanto a inocência da
infância quanto a responsabilidade da vida adulta, de modo que a fronteira
entre as duas é apagada. Em certo sentido (muito verdadeiro), as crianças são
deixadas à sorte, para que se defendam por si mesmas, para que forjem, fora
das ruínas que testemunham, o único tipo de comunidade que pode auxiliá-las em tal situação -- que é o bando.
A essência do bando é que ele vive numa relação antagônica com o seu meio. O mundo a seu redor pertence aos outros, àqueles que não têm
direito de participação no grupo e cuja propriedade e estilo de vida os demarca
como alienígenas. Deste modo, o bando emerge em um mundo que já está fechado para ele, e deve fazer algo para tornar sua presença conhecida. (Várias são as
avenidas que indicam tal presença.) Uma maneira é vandalizar o espaço público e gravar nele um
símbolo rival. Esse é o verdadeiro sentido do grafite, que são assinaturas
de gangues, destinadas tanto a desfigurar o espaço público quanto a
apropriar-se do seu significado.
Outros ritos de passagem artificiais estão disponíveis. A
confrontação violenta com outras hordas é um deles, e nas cidades britânicas
essa forma de iniciação é bastante comum, o que acarretou, nos últimos anos, muitas
mortes por facadas. Os motins também podem ser ritos de passagem -- uma maneira
de "aderir" que oferece oportunidade se sentir membro e libertado,
e que realiza o desejo de vingança contra um mundo que até então não havia
oferecido nada além da exibição da propriedade alheia. Eles não costumam se
intensificar na medida a que temos assistido na Grã-Bretanha neste último
verão. Mas o tumulto está no pano de fundo da vida adolescente, como sabem todos os
que conhecem alguém que vive perto de uma de nossas escolas do centro da
cidade.
Não é apenas na Grã-Bretanha que esses efeitos foram notados.
Na Alemanha, cada espaço público foi desfigurado pelo grafite e pouco ou
nada é feito aos responsáveis -- afinal de contas, a punição pertence à forma
de vida autoritária que os alemães estão tentando com tanta dificuldade
esquecer. Ao mesmo tempo, essa permissão para destruir não
satisfaz a fome dos jovens alemães por participação grupal ou a sua
raiva contra um mundo que tem falhado em propiciar essa participação. Toda sexta-feira
à noite, durante os últimos quatro anos, automóveis foram incendiados em
Berlim, e um artigo em Die Welt am Sonntag comparou recentemente a
situação na capital germânica com a de Tottenhan, onde as arruaças britânicas
começaram. E não pensemos que a obsessão germânica com o neonazismo é absurda. Prive os
jovens dos ritos de passagem para dentro da ordem social e eles vão
buscar um rito de passagem para fora dela. Isso, no meu ponto de vista, é a
verdadeira explicação para o caso de assassinato em massa perpetrado pelo
norueguês Breivik, um homem cujo pai o havia rejeitado, que não encontrou
nenhuma sociedade que o incluísse e que despejou sua vingança em jovens que
pareciam estar se divertindo com o próprio reconhecimento grupal que lhe
faltava.
Uma coisa é reconhecer a necessidade de ritos de passagem, outra é
propor uma maneira de redescobri-los. Até agora os esforços dos políticos na
Europa e nos Estados Unidos foram negativos. O resultado das políticas atuais foi
subsidiar nascimentos fora do casamento, transformar o casamento num contrato
de coabitação e conduzir a religião, que é a verdadeira guardiã dos ritos de
passagem, para fora da esfera pública. Essas políticas são abraçadas com a
melhor das intenções, mas mostram uma clara indiferença para com o que sabemos
acerca da natureza humana. O camnho de volta à perpetuidade será longo e doloroso,
porém, é manifesto, sem dúvida, que o primeiro passo que deve ser dado é parar de subsidiar
as soluções alternativas.
Nota: o título do artigo original é Riots of Passage, ou seja, algo como Motins (ou Arruaças) de Passagem, o que permite uma espécie de trocadilho com Ritos de Passagem. Mas eu não consegui traduzi-lo, criativamente, para o português. Por isso, deixei apenas Ritos de Passagem.
Texto original:
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