Outono de 2013
Roger Scruton
Conforme as universidades se expandiam no século XX e as ciências exatas
e naturais eram marginalizadas de um sistema educacional cada vez mais
relutante em exigir demais dos seus alunos, as humanidades foram sendo transferidas para
o centro do currículo. A primeira dentre elas foi o inglês, uma disciplina que
só em meados do século firmou seu lugar como diploma nas universidades
britânicas, em grande parte como um resultado da tentativa fracassada de I. A.
Richards de tratar o estudo da literatura como um ramo da sociologia empírica.
A história da arte se desenvolveu junto com o inglês e trouxe consigo a
abordagem hegeliana da história desenvolvida nas universidades germânicas. E o
crescimento proeminente da filosofia (ainda considerada como um ramo das
“ciências morais” durante meus dias de graduação em Cambridge) lançou bases
para uma expansão contínua do currículo até áreas bastante diversas, como
civilização clássica, análise de filmes e arte da escrita. A expansão
simultânea das ciências -- chegando a englobar antropologia (absorvida na
arqueologia, em Cambridge, durante minha juventude), sociologia, economia,
ciência política e teoria da educação -- mostrou que muitas áreas de estudo se
situavam com dificuldade entre as artes e as ciências e exigiam empréstimos
de ambas. Tome, como exemplo, os estudos de mídia: era um ramo da sociologia ou
uma subseção da crítica literária? Durante os anos 1960 e 1970 surgiu muito
rapidamente o hábito de misturar aglomerados de disciplinas das ciências
sociais e humanidades para produzir “estudos” que iriam recorrer à admissão
cada vez mais irrestrita de alunos, transmitindo uma imagem espúria – e muitas
vezes altamente politizada – de relevância.
Na universidade atual, surge a impressão de que, fora do campo das
ciências exatas e naturais, qualquer coisa serve; de que as humanidades não têm
sequer um método, nem um corpo de conhecimentos recebidos, cabendo ao professor
decidir o que vai ensinar em suas aulas. As tentativas ocasionais de
estabelecer um cânone de grandes livros são rápida e facilmente derrubadas,
enquanto os jornais estão repletos de artigos dedicados ao que Jean
Bricmont e Alan Sokal condenaram severamente como “imposturas intelectuais”.
Um problema adicional foi gerado pelo crescimento de escolas de
pós-graduação em ciências humanas e sociais. Cada vez mais, os departamentos e
os professores universitários são avaliados – para a definição de seu status
e para a concessão de verbas – segundo a sua produção de “pesquisas”. O emprego
dessa palavra para designar o que antes pôde receber o nome de “estudos” insinua,
naturalmente, uma afinidade entre as humanidades e as ciências, dando a
entender que as duas estão igualmente empenhadas em descobrir coisas, sejam fatos ou
teorias, que seriam acrescentadas ao estoque de conhecimentos
humanos. Pressionadas para justificar sua existência, as humanidades, portanto,
começam a procurar ciências que lhes forneçam "métodos de pesquisa" e que
prometam "resultados". Sugerir que a preocupação fundamental das humanidades é
a transmissão de “cultura” – como defenderam alguns seguidores do poeta e
crítico do século XIX, Matthew Arnold – seria rebaixá-las a uma posição inferior.
Se o que todas as humanidades têm a oferecer é “cultura”, então elas
dificilmente podem recorrer ao erário do mesmo modo que as ciências, que estão
constantemente acrescentando algo ao nosso estoque de conhecimentos. A cultura
não tem métodos, ao passo que a pesquisa procede mediante conjeturas e provas.
A cultura significa o passado; a pesquisa significa o futuro.
Ademais, visto que a defesa das humanidades baseia-se na “cultura” que
transmitem, elas se tornam vulneráveis à desconstrução. É possível evocar
inúmeras teorias – a teoria marxista da “ideologia”, ou alguma teoria
feminista, pós-estruturalista ou foucaultiana – para defender a opinião de que o status das preciosas conquistas da nossa cultura se deve tão somente ao
poder que se manifesta através delas, e que não possuem, portanto, mérito intrínseco algum. Dessa maneira, toda concepção da cultura como uma esfera
autônoma do conhecimento moral, que demanda aprendizado, estudo e imersão, a
fim de seja elevada e absorvida, é lançada aos ventos. Sob esse ponto de vista,
as universidades existem, não para transmitir cultura, mas para desconstruí-la,
para remover sua aura de respeitabilidade. O objetivo da universidade é
transmitir ao aluno, depois de três ou quatro anos de dispersão inquietante, a
opinião de que vale tudo e nada importa.
Invadindo as Humanidades
Parece que, hoje, chegamos ao ponto em que as humanidades se transformaram – ou quase isso. Podemos observar tentativas crescentes de retificar
os problemas das humanidades absorvendo o seu tema em uma ou outra ciência.
Tome, por exemplo, a história da arte. Gerações de estudantes foram
atraídas para esse assunto na esperança de adquirir conhecimentos sobre as
obras primas do passado. A história da arte foi desenvolvida nas universidades
alemãs do século XIX, sob a influência dos historiadores Jacob Burkhardt,
Heinrich Wölfflin e outros, e se tornou um
paradigma para o estudo do assunto em humanidades. A teoria hegeliana do Zeitgeist,
colocada em uso de modo astuto por Wölfflin, dividiu tudo em períodos
nitidamente circunscritos – Renascença, Barroco, Rococó, neoclássico, e assim
por diante. E o método “comparativo”, em que as imagens eram mostradas lado a
lado e suas diferenças atribuídas às distintas estruturas mentais dos seus
autores, mostrou-se infinitamente fértil para a crítica. Observe as obras de
Wittkower, Panofsky, Gombrich, e outros produtos dessa escola de pensamento
(muitos dos quais fugiram para se safar da destruição nazista das universidades
alemãs), e você concluirá, seguramente, que jamais houve acréscimo mais criativo
e valoroso para o currículo nos tempos modernos.
Os estudiosos, porém, não ficam satisfeitos.
Haveria ainda alguma “pesquisa” a ser realizada sobre a arte de Michelangelo ou
a arquitetura de Palladio? Haveria algo a ser acrescentado ao estudo das
catedrais góticas depois de Ruskin, Von Simson, Pevsner e Sedlmayr? E como é
que vamos enfrentar a acusação de que esse assunto inteiro está concentrado nas
mãos de alguns homens brancos europeus, já falecidos, que falaram claramente
para seus tempos, mas que não têm grande relevância para os nossos? Em
suma, como conseqüência de seu próprio sucesso, o tema da história da arte foi
jogado para escanteio dentro da academia, sem recursos e sem alunos de
graduação – exceto, é claro, se puder gerar um novo campo de "pesquisas".
Problemas similares têm atormentado a musicologia e
os estudos literários. E, nos dois casos, surge a tentação de procurar um ramo
das ciências naturais que pudesse ser aplicado ao tema em questão, de modo a
resgatá-lo da sua esterilidade metodológica. Duas ciências em particular
parecem dar conta do recado: a psicologia evolucionista e a neurociência. Ambas
tratam da mente humana, e uma vez que a cultura é um âmbito da mente, essas
duas ciências seriam capazes de lhe conferir algum significado. A psicologia
evolucionista trata os estados mentais como adaptações e explica-os em termos
de vantagens reprodutivas que tais adaptações propiciaram aos nossos
antepassados; a neurociência explica os estados mentais como aspectos do
sistema nervoso, sob o prisma da sua função cognitiva.
Ao longo das últimas décadas, portanto, temos
assistido a uma invasão constante da metodologia científica nas humanidades.
Essa invasão ilustra muito bem a distinção entre as formas de
pensamento científicas e cientificistas. O verdadeiro cientista tem uma questão
clara, um corpo de dados e uma resposta teórica (à questão) que pode ser
contrastada com esses dados. O cientificista toma de empréstimo o aparato da
ciência, não para explicar o fenômeno que está diante dele, mas para criar uma aparência
de questão científica, uma aparência de dados e uma aparência de método que nos
conduziria a uma resposta.
O estruturalismo na crítica literária, como
exemplificado por Roland Barthes em seu livro de 1970, “S/Z”, era
cientificista, neste sentido. Esse estruturalismo levantou questões que tinham
aparência científica, e as abordou com teorias que não poderiam ser refutadas por conta das suas previsões equivocadas. A estranha análise de Barthes sobre o
conto “Sarrasine” de Balzac, em que ele se debruça sobre as tecnicalidades da
lingüística de Saussure, criou certa agitação naquela altura e foi
imediatamente adotada por críticos literários ávidos para encontrar um "método"
que entregaria resultados. Os resultados nunca chegaram, e esse episódio em
particular está agora mais ou menos esquecido.
Um caso similar pode ser encontrado hoje na nova
“ciência” da “neuroestética”, introduzida e promovida por V. S. Ramachandran,
Semir Zeki e William Hirstein, que se comprometeram a produzir seu próprio
jornal e já têm uma pilha crescente de publicações dedicadas aos resultados
desse empreendimento. E o historiador da arte John Onians seguiu o exemplo,
tentando reformular sua disciplina como uma ciência da Neuro-história-da-arte (título
do seu livro publicado em 2008).
Ao longo dos séculos filósofos e críticos têm se
perguntado sobre o sentido da arte, por que ela é tão especial, e por que nos
afeta dessa maneira. Suas especulações são sutis, difíceis, e atentam para cada
ponto do significado humano do tema – o que a obra de arte expressa para
nós, quem a interpreta e quem a assimila realmente. Essa significação
humana é um fenômeno cultural – o tipo de objeto para o qual existem os estudos
de humanidades. Assim, o primeiro passo de Ramachandran e Hirstern, na
publicação em que explicam sua teoria, em 1999, foi apresentar a
arte como já revestida da ciência que tencionavam aplicar:
"O
propósito da arte, sem dúvida, não é apenas descrever ou representar a
realidade – o que pode ser feito por uma simples câmera – mas elevar,
transcender ou até mesmo distorce-la... O que o artista tenta
fazer (quer consciente ou inconscientemente) é não apenas captar a essência de
algo, mas ampliá-lo, para ativar de modo mais intenso os mesmos mecanismos
neurais que seriam ativados pelo objeto original."
Tendo reduzido o efeito da arte a uma distorção
perceptiva e tendo deslumbrado o leitor com uma referência aos "mecanismos
neurais", Remachandran e Hirstein invocam, então, um princípio psicológico – o
efeito "peak shift", de acordo com o qual um animal que tenha aprendido a
reagir a um estímulo responde mais fortemente à exageração desse estimulo –
para fornecer uma explicação geral "do que a arte realmente trata". A essas teorias
simplificadoras e mal aplicadas se seguiu uma confusão que foi explorada e ampliada
pelo professor de filosofia e estética britânico John Hyman. Em seu artigo de
2010 ‘Arte e Neurociência’,
Hyman mostra que os neuro-esteticistas não compreenderam o efeito peak
shift, que eles são lamentavelmente ignorantes em relação à arte, e que
suas teorias, na verdade, não têm nada a dizer sobre a distinção entre a arte e
a não-arte. Para os fins da presente análise, é também digno de nota o modo
como a ciência entra na descrição que Ramachandran faz do assunto. Em vez de
uma tentativa cuidadosa e circunspecta de definir um problema, ele oferece uma
descrição superficial de alguns fenômenos artísticos, alude gratuitamente a uma
explicação que lhe é predileta ("mecanismos neurais") e apresenta uma
antecipação do resultado de sua aplicação. Eis a marca inconfundível do
cientificismo – a ciência antecede a questão, e a redefine como um problema que
pode ser solucionado por meios científicos. Mas as dificuldades na compreensão
da arte surgem precisamente porque as questões sobre sua natureza e seu
significado não exigem uma explicação, mas uma descrição.
Ciência e Subjetividade
Por que devem existir questões como essas, e por
que elas estão para além do domínio das ciências empíricas? A resposta mais
simples é que elas são questões que dizem respeito ao espírito (Geist)
e, portanto, a fenômenos que estão fora do alcance dos métodos experimentais.
Mas essa não é uma resposta que deixaria as pessoas satisfeitas, hoje; colocar
a questão dessa maneira suscitaria, provavelmente, um sorriso cético e irônico.
O “espírito” desapareceu quando Kant demoliu a teoria cartesiana do sujeito. Se
não desapareceu, como a noção de espírito sobreviveria aos avanços da ciência
cognitiva, da genética e da psicologia evolutiva, que aboliram as ilusões com
base nas quais a religião dominava o nosso mundo? Pode-se dizer que tudo o que
Ramachandran e companhia estão fazendo é substituir a linguagem vaga, em que a
disputa entre a ciência e o Geisteswissenschaften (“estudo da mente ou do espírito”, um termo de certo modo mais
apropriado do que “artes liberais”) foi formulada originariamente, por algo que
estaria mais de acordo com a visão moderna do que somos. O problema é que não
há consenso algum sobre a “visão moderna do que somos”, em grande parte porque
a relação entre “nós” e “eu” é incerta, sendo incerto, também, o lugar que o
individuo autoconsciente ocupa na ciência das espécies.
Enquanto sujeito consciente, eu tenho um ponto de vista sobre o mundo. O
mundo aparece para mim de determinado modo, e esse “aparecimento” define
a minha perspectiva individual. Cada ser autoconsciente tem, então, uma
perspectiva que lhe é própria; é isso o que significa ser um sujeito e não um
objeto. Quando eu ofereço uma explicação cientifica do mundo, porém, eu
descrevo apenas objetos. Eu descrevo o modo como as coisas são e as leis
causais que explicariam tal forma de existência. Essa descrição não é elaborada
desde uma perspectiva particular. Ela não contém palavras como “aqui”, “agora”
e “eu”; e embora se destine a explicar o modo como as coisas aparecem, ela é
apresentada como uma teoria de como as coisas são. Em suma, a subjetividade é,
em princípio, inobservável para a ciência – não porque exista em outro domínio
da realidade, mas porque não faz parte do mundo empírico. Ela encontra-se no
limiar das coisas, como um horizonte, e não pode ser compreendida "desde outro
lado", o lado da própria subjetividade.
A subjetividade faz parte do mundo real? Em certo sentido, não. Pois eu
jamais a encontrarei no mundo dos objetos. Mas, sem a minha natureza subjetiva,
nada é real para mim. Se eu me importo com mundo, então eu devo ser o primeiro a
ter interesse pela subjetividade, sem a qual não haveria qualquer perspectiva
desde a qual eu pudesse vê-lo, e não seria possível sequer falar de um mundo,
na verdade. Essa atenção dirigida à subjetividade é o propósito da arte, ou
pelo menos da arte que importa. E é uma das razões pelas quais os estudos de
humanidades, que tomam a arte e a cultura como seu objeto, jamais poderão ser
reduzidos às ciências naturais.
A compreensão humana se dá através de atitudes que Martin Buber resumia
como as relações entre Ich e Du (Eu e Tu), mas que talvez fossem
mais bem descritas como relações entre eu e eu. Enxergamos uns aos outros de
eu para eu, e dessa relação surge todo o julgamento, toda a
responsabilidade, toda a vergonha, o orgulho e a realização. Esse fato
importante sobre a condição humana pode ser resumido na palavra que nos foi
legada pelo direito romano e que foi retomada por Boécio e S. Tomás de Aquino:
“pessoa”. Somos pessoas, e a personalidade é a nossa essência.
Existem alguns conceitos que brotam naturalmente da noção de
personalidade e que exercem um papel ordenador em nossa experiência – conceitos
como ornamento, melodia, dever e liberdade – mas que não pertencem a nenhuma
teoria científica, porque enquadram a realidade de uma maneira que ciência
natural alguma jamais aceitaria. A ciência pode nos dizer muito sobre a seqüência ordenada de
sons; mas ela não nos diz nada sobre as melodias. Uma melodia não é um objeto
acústico, e sim musical. E os objetos musicais pertencem a um domínio puramente
intencional: eles tratam de outra coisa; estão imbuídos de
significado e são sons na medida em que nós, seres autoconscientes, os
experimentamos enquanto tais. O conceito de pessoa é como o de uma melodia. Ele
se mostra na nossa forma de percepção e no modo como nos relacionamos uns com
os outros, mas ele não pode ser “transportado” para dentro do campo de
determinada ciência que investigue o homem. O fato de que a pessoa não possa
ser transportada para dentro de uma ciência não significa que não existam
pessoas, e sim, apenas, que uma teoria científica, ao classificá-la, a colocaria ao lado de outros objetos – por exemplo, dos macacos ou outros mamíferos.
Em outras palavras, a realidade do homem é definida por uma noção que
não pertence à ciência da natureza humana. A ciência nos vê como objetos e não
como sujeitos, e as descrições que ela oferece acerca de nossos comportamentos
não são descrições do que nós sentimos. Quando nos falamos sobre a alma, geralmente
não nos referimos a alguma substância cartesiana pairando no interior de algum
lugar. Referimos ao princípio ordenador da consciência em primeira-pessoa:
às capacidades de auto-atribuição, de auto-conhecimento e de relações
intersubjetivas que parecem nos distinguir de todas as outras espécies e que
fazem com que a vida humana seja digna de ser vivida. Esse princípio ordenador
é o que Aristóteles e S. Tomás de Aquino expressavam ao descrever a alma como a
forma do homem, e o corpo como sua matéria; tudo o que eu teria a acrescentar a
essa descrição seria uma definição do conceito de forma em termos de ordenação
que se revela na primeira pessoa do singular – ou seja, no sentido de uma
pessoa em particular.
O nosso comportamento se fundamenta sobre a convicção que temos na
liberdade, na individualidade, e na compreensão de que eu sou eu, de que você é
você, e de que cada um de nós é um centro de pensamentos e ações livre e
responsável. Além dessas convicções, existe todo o mundo dos vínculos
interpessoais, e é a partir das relações mútuas que formulamos conceito acerca do que nós
somos. Conseqüentemente, parece que temos uma necessidade existencial de elucidar
os conceitos de eu, de escolha livre, de responsabilidade e tudo o mais, se
queremos tornar mais nítido o nosso auto-conhecimento – para o que nem
todas as neurociências do mundo nos ajudariam. Nós vivemos na superfície, e o
que nos importa não são os sistemas nervosos invisíveis que explicariam como as
pessoas funcionam, mas as aparências visíveis com as quais nos relacionamos,
quando vemos os outros enquanto pessoas. O que nós interpretamos são
essas aparências; e em cima dessas interpretações criamos respostas que, por
sua vez, serão interpretadas; e assim por diante. E porque a cultura é
construída sobre essas relações interpessoais e intersubjetivas é que ela é um
domínio diferenciado da investigação humana, que não pode ser substituído por
uma ciência natural.
Do que tratam as pinturas
Isso nos traz de volta à história da arte e ao estudo da pintura. O que
são as pinturas - cientificamente falando, seu significado se revela em
contraste com o quê? É bastante óbvio que a famosa pintura de Ticiano, Venus de
Urbino (1538), consiste numa tela onde estão
distribuídos alguns pigmentos (ver abaixo). Poderíamos descrever essa distribuição
usando coordenadas geométricas em espaço bidimensional, e então digitalizar a
pintura de Ticiano para que uma máquina a pudesse reproduzir. Essa forma
digital não faz menção alguma à mulher, à criada, ou aos olhos que nos desafiam
e à mão que se esconde. No entanto, ela contém todas as informações necessárias
para reproduzir a imagem, naqueles aspectos que são visíveis para quem tenha a
capacidade de compreender uma foto. Podemos mesmo conceber animais que fossem
capazes de reconhecer a distribuição de pixels, de reagir seletivamente
a cada diferença entre os padrões de pigmentos, mas que não poderiam enxergá-la como
nós: enquanto pintura. E, claro, estamos familiarizados com programas
digitais que gravam, transmitem e apresentam imagens quadriculadas em máquinas
que não enxergam nada, absolutamente.
Venus de Urbino,
Ticiano (1538)
A resposta mais simples a este tipo de exemplo é dizer que as imagens
são traços que emergem dos objetos físicos em que estão contidos. A pintura da jovem
dama de Urbino não é algo que está para além do arranjo de cores que vemos,
mas também não pode ser reduzida a esse mero arranjo: mesmo que a distribuição
correta de pigmentos possa reproduzi-la, a imagem é um aspecto da
pintura que aparece para aqueles que têm a capacidade imaginativa requerida
para percebê-la. Na verdade, alguém pode ser um especialista em produzir copias
de Venus de Urbino e, ao mesmo tempo, estar cego em relação ao seu
próprio objeto, vendo-o apenas como uma distribuição de pigmentos na tela.
É certo que há muito a ser dito sobre a pintura de Ticiano em termos de
disposição de pigmentos numa matriz bidimensional. Mas nada do que seja dito a
este respeito equivalerá a uma interpretação da pintura, nem nos dirá algo
acerca de seu significado ou de seu valor. Pois ignoraria o fato mais importante
sobre a pintura: o de que ela trata. A expressão “de que se trata” é
digna de atenção: é a mesma que faz com que surja todo tipo de dificuldades na
compreensão de estados de espírito que outrora foram vistos como obstáculos
intransponíveis à simples análise física da mente. As pinturas têm
intencionalidade tal como as convicções e os desejos. E elas podem ser
comparadas, neste tocante, não apenas com outras pinturas, mas com obras
literárias e musicais. Se a pintura de Ticiano deve ser entendida como a
expressão de sexualidade doméstica ou nupcial, ou se a senhorita deve ser vista
mais como uma cortesã do que uma esposa: eis uma questão de interpretação.
Podemos comparar a pintura de Ticiano com outra que se refere a ela
explicitamente, como a famosa Olímpia, de Manet (1863, ver abaixo), em
que o comércio de rua grosseiro é colocado em relação irônica com o acolhimento
suave e macio da Veneza Renascentista. As interpretações começam quando
emitimos esses juízos comparativos, e é difícil conceber como a neurociência
poderia contribuir para o desempenho da análise. Podemos compreender as pinturas descobrindo
o seu significado, avaliando o lugar que esse significado ocupa na vida de quem
o observa e o que transmitem sobre a condição humana. Você provavelmente terá
um insight da pintura de Manet se você compará-la com dois romances: Safo
(1884), de Aphonse Daudet e Nana (1880), de Émile
Zola. E você compreenderá melhor o que Manet está dizendo se você ver o mundo
de Ticiano refletido ironicamente nas formas e adereços de uma boulevardienne.
A crítica da arte dispõe de uma disciplina que envolve raciocínios e
juízos. Ela não é uma ciência e o objeto que ela descreve não faz parte do
mundo físico, onde não há Olympia ou qualquer outra coisa que percebamos na
pintura de Manet. Contudo, pensar que, por esse motivo, a crítica da arte seja
deficiente e deva ser substituída pelo estudo de pigmentos, seria, sem dúvida,
um erro. Existem formas de conhecimento humano que não podem ser reduzidas nem
aprimoradas pela ciência.
É aqui que os neuro-charlatães intervêm, para declarar que, claro, a
ciência dos pixels não explicará as pinturas, já que elas estão nos olhos de
quem vê. Mas, dizem, existe também algo chamado ressonância magnética do
observador, a qual encerra o segredo da imagem no quadro. Se, pois,
compreender uma pintura é observá-la de certa maneira – de maneira a captar seu
aspecto visual e o significado que esse aspecto tem para seres como nós – então
devíamos, antes, examinar as cadeias de reações neurais envolvidas na captação
desse aspecto e as conexões que ligariam tais cadeias ao juízo de
significado.
Mas o quê, exatamente, um estudo como esse nos mostraria? Suponha que
tivéssemos decifrado perfeitamente as seqüências de reações neurais implicadas
na visão de um objeto estabilizado na mente do observador. Não se trata, aqui,
de um juízo crítico, e embora nos permita prever que o observador normal, quando
confrontado com a pintura de Ticiano, verá uma mulher nua deitada em um sofá
olhando para ele, isso não diria nada em resposta à seguinte crítica: Sim, mas
isso não é tudo que está lá, e, na verdade, você deve notar que essa
mulher não está completamente nua, mas sem roupas, e que seu corpo, como Anne
Hollander demonstra de modo tão convincente em
Seeing Through Clothes, tem
a textura e o movimento das roupas que ela tirou; que aqueles olhos não olham
para você, mas através de você, sonhando com alguém que não é você. Os críticos
não nos dizem como nós vemos as coisas quando lançamos mãos de nossos
meios usuais interpretativos, e sim como devíamos vê-las; suas explicações sobre o
significado de uma pintura são também uma recomendação, que acatamos por nossa
própria liberdade de escolha. A neurociência, portanto, permanece uma
ciência, apenas: não pode elevar-se ao nível da compreensão intencional, onde o
significado é criado pelos nossos próprios atos voluntários. Desse modo, não
devemos nos surpreender diante da repetição enfadonha da neuroestética e de sua
inabilidade em lançar luz sobre a natureza ou o significado das obras de arte.
Assim como há um discernimento da arte, que constitui o terreno da
crítica e que é um exercício racional dotado dos seus próprios padrões de
validade, há também um discernimento da vida humana, que constitui o terreno
das relações interpessoais e que é um exercício racional submetido às suas
próprias regras. E assim como é um erro pensar que a crítica da arte pode ser
substituída pela neurociência que supostamente explicaria a experiência
artística, também é um erro pensar que o entendimento interpessoal possa ser
substituído pela neurociência que supostamente explicaria o nosso
comportamento. Essa substituição demandaria descrições do comportamento humano que o separaria do contexto que lhe confere sentido; exigiria que tornássemos
reducionistas, indivíduos não conseguem notar que os aspectos mais importantes
da condição humana emergem da realidade, que estes aspectos existem na
superfície do mundo e são invisíveis àqueles cujos olhos estão fixados nas
profundezas.
A ilusão do meme
As culturas são reflexões que o ser humano realiza na (e sobre a)
superfície da vida, formas pelas quais nós compreendemos o mundo das pessoas e
a estrutura moral dentro da qual vivem. Mas essa ideia elevada da cultura tem
sofrido, nas últimas décadas, outro ataque cientificista, desta vez de Richard
Dawkins e seu conceito do "meme", explicitado pela primeira vez em O Gene Egoísta (1976). Dawkins sugere
que a seleção natural poderia explicar todos os problemas apresentados pela
cultura humana, desde que a enxerguemos como algo que evolui de acordo com os
mesmos princípios darwinianos que dirigem a evolução biológica. Assim como todo
organismo é uma "máquina de sobrevivência" que existe para fornecer genes que
se auto-propagam, os seres humanos também são "máquinas de sobrevivência" que
existem para fornecer "memes" que se auto-propagam – entidades mentais que usam
as energias do cérebro humano para se multiplicar, da mesma maneira que um
vírus usa as energias das células. Como os genes, os memes precisam de um lugar para se alojar, e o seu sucesso depende
de encontrar o nicho ecológico que lhe permitirá gerar mais exemplares de sua
espécie. E esse nicho é o cérebro humano.
O meme é uma entidade cultural
que se auto-propaga e que, alojando-se num ser humano, usa seu cérebro para multiplicar-se
– como uma melodia cativante se reproduz em zumbidos e assobios,
espalhando-se como uma epidemia se espalha numa comunidade humana, como ‘La donna è mobile’ na manhã seguinte da
primeira execução de Rigoletto, de
Verdi. Dawkins sustenta que as ideias, as crenças e as atitudes são formas
conscientes às quais essas entidades auto-reprodutoras aderem, e que se auto-propagam
como doenças se auto-propagam – usando a energia de quem elas habitam. "Assim como
os genes se propagam em fundos genéticos saltando de corpo em corpo por meio de
espermatozoides e óvulos, os memes se
propagam em fundos meméticos saltando
de cérebro em cérebro por meio de um processo que, em sentido amplo, pode ser
chamado imitação". Daniel Dennet, em livros como A Liberdade Evolui (2003)
e Quebrando
o Encanto: A Religião como um Fenômeno Natural (2006) acrescenta que esse processo pode ser prejudicial ou benéfico
para quem abriga o meme – este pode ser parasita ou simbiótico.
A teoria do "meme" ameaça desacreditar todo o domínio da alta cultura,
transformando-a em algo que sobrevive no – e, por assim dizer, pelos próprios
esforços do – cérebro humano, em algo que não tem mais significado intrínseco
do que qualquer outra rede de adaptações. Para fazer com que a teoria seja
remotamente plausível, entretanto, Dawkins tem de distinguir os memes que
pertencem à ciência daqueles que são meramente "culturais". Os memes científicos
são submetidos a um policiamento adequado pelos cérebros que os abrigam, os quais
aceitam as ideias e as teorias apenas como parte do próprio método da ciência direcionado à verdade. Os simples memes culturais estão fora do
alcance da inferência científica e podem gerar distúrbios e causar todo o tipo
de desordem cognitiva e emocional. Não são submetidos a nenhuma disciplina
externa, como aquela subentendida no conceito de verdade, mas seguem seu próprio
caminho de reprodução, indiferentes aos objetivos do organismo que invadiram.
A ideia do meme pode parecer atraente no plano metafórico, mas a
que corresponderia, na realidade? Do ponto de vista da memética, as ideias
absurdas nascem do mesmo modo que as teorias verdadeiras, e o assentimento é
uma honra retroativa concedida àquelas que conseguiram se reproduzir. A única
distinção importante que resta a ser feita, ao levar em conta esse processo, é
entre os memes que melhoram a vida de seus anfitriões e os memes que
querem destruir ou parasitar essa vida.
Uma das características que distinguem o ser humano, porém, é que ele tem
a capacidade de distinguir entre conceito e realidade, de admitir e cogitar
hipóteses com as quais não concorda, e de, então, transferir seu julgamento
para o terreno das ideias, chamando cada uma para o tribunal do argumento
racional, aceitando-as e rejeitando-as, independentemente do seu poder de
auto-propagação. E não é apenas na ciência que esta atitude de reflexão crítica
é sustentada. Mathew Arnold, em sua coleção clássica de ensaios Cultura e Anarquia (1869), descreveu a
cultura como "a busca da nossa perfeição total mediante a tentativa de conhecer
o melhor possível o que foi dito ou pensado no mundo, em todas as questões que
nos dizem respeito, e, através desse conhecimento, transformar uma corrente de
pensamento vigorosa e livre em noções de valores e hábitos".
Como tantas pessoas que se apegaram a uma visão da ciência originada no século
XVIII, que prometia apresentar explicações científicas para os fenômenos
culturais e sociais, Dawkins se esquece da resposta que lhe foi oferecida na
época: Espere um pouco; a ciência não é a única maneira de buscar conhecimento.
Há também o conhecimento moral, que é o domínio da razão prática. Há o
conhecimento emocional, que é o domínio da arte, da literatura e da música. E,
possivelmente, há o conhecimento da transcendência, que é o domínio da
religião. Por que privilegiar a ciência? Só porque ela se propõe a explicar o
mundo? Por que não dar importância às disciplinas que interpretam o mundo e nos
ajudam a encará-lo como algo familiar?
Essa resposta não perdeu nada do seu apelo. E ela indica uma fraqueza
fundamental da "memética". Mesmo que existam unidades de informações meméticas
propagadas de cérebro para cérebro, não são essas unidades que temos em mente
quando pensamos conscientemente. Os memes
estão para as ideias como os genes estão para os organismos: se eles
existem em todos nós (e Dawkins, ou qualquer outro, não forneceu qualquer prova
a respeito), então sua reprodução incessante e despropositada não tem interesse
algum para a cultura. As ideias, ao contrário, fazem parte de um encadeamento
consciente da reflexão crítica. Nós as avaliamos segundo sua verdade, sua
validade, seu decoro moral, sua elegância, sua completude e sua graça. Nós as
acatamos e as descartamos, às vezes no curso de nossa busca por verdade e explicação,
às vezes em nossa busca por significado e valor. E ambas as atividades são
essenciais para nós. Embora a cultura não seja ciência, ela também é uma
atividade do espírito crítico. A cultura – tanto a cultura elevada da arte e da
música, quanto a cultura mais ampla incorporada numa tradição religiosa e moral
– classifica as ideias de acordo com qualidades intrínsecas, e permite que nos
sintamos em casa no mundo, fazendo ressoar em nós a sua significação pessoal.
É verdade que a teoria do meme não
nega o papel da cultura, nem prejudica a visão do século XVIII de que a
cultura, se bem compreendida, é, da mesma maneira que a ciência, uma atividade
racional do espírito. Mas o conceito de meme
pertence a outros conceitos subversivos – à "ideologia" de Marx, ao
inconsciente de Freud, ao "discurso" de Foucault – que estão caindo em
descrédito no preconceito comum. Essa teoria procura expor as nossas ilusões e
explicar os nossos sonhos. Mas o meme
em si mesmo é um sonho, é parte de uma ideologia e é acatado, não por sua
verdade, e sim pelo poder ilusório que confere àquele que enfeitiça. A teoria
do meme produziu alguns argumentos
interessantes, pelo menos aqueles formulados por Daniel Dennet em Breaking the Spell, para explicar a religião como um meme particularmente bem sucedido,
embora perigoso.
Mas o memetismo padece do próprio defeito que pretende remediar: ele é um
feitiço com que a mente científica procura encantar as coisas que representam
uma ameaça para ela – e essa é a forma como devemos ver o cientificismo em
geral. O cientificismo envolve o uso de formas e categorias científicas a fim
de dar uma aparência científica a maneiras de pensar que não são científicas.
Ele é uma forma de magia, uma tentativa de reformular a questão complexa da
vida humana sob o comando do mágico, num formato sobre o qual ele possa ter
controle. O cientificismo é uma tentativa de subjugar o que ele não compreende.
Sem dúvida, o ser humano pode fazer mais do que isso – por meio da
busca da verdadeira explicação científica, por um lado, e por meio do estudo da
alta cultura, por outro. Uma cultura não abrange somente obras de arte, nem se
destina exclusivamente a interesses estéticos. Ela é a esfera dos artefatos que
são de interesse intrínseco, que estão ligados, pela faculdade do juízo, com nossas
aspirações e ideais. Apreciamos obras de arte, argumentos, obras de história e
de literatura, bons costumes, roupas, piadas e formas de comportamento. Mas,
quando o fazemos, que tipo de juízo emitimos, e para onde esse juízo nos conduz?
É de minha convicção que, enquanto firmada na perspectiva de “eu” que é
a raiz da condição humana, a cultura se dirige sempre para a transcendência: o
ponto no limiar do espaço e do tempo, que é a subjetividade mesma do mundo. E quando
perdemos o senso dessa realidade e de sua vigilância eterna e tranquila, toda a
vida humana é lançada às sombras. Chegamos ao ponto em que mesmo A Paixão
segundo São Matheus e Piedade de Rondanini não nos dizem nada a mais
do que um tubarão em formol. Tal é a direção que tomamos. Mas é uma direção deslizante,
uma recusa de adotar a postura que é inerente à condição humana: o esforço de
enxergar os acontecimentos desde o outro lado e na sua totalidade, como eles se
afiguram aos olhos de Deus.
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