17.12.12
O grande engodo
De tubarões em conserva a músicas compostas de silêncio, as pseudo-idéias e as falsas emoções tomaram o lugar da verdade e a beleza.
O artista Jeff Scoons e sua escultura.
Foto por Bob Adelman/Corbis
A alta cultura é a autoconsciência da sociedade. Ela abrange obras
de arte, de literatura, de erudição e de filosofia que estabelecem um quadro de
referência comum entre as pessoas cultas. A alta cultura é uma realização precária e perdura apenas se for sustentada por um senso de tradição e apoiada amplamente pelas normas sociais em torno. Quando essas coisas
desaparecem, como inevitavelmente acontece, a alta cultura é sobrepujada por
uma cultura de falsificações.
As falsificações dependem, em alguma medida, da cumplicidade entre
falsificador e vítima, que conspiram entre si para acreditar no que não
acreditam e sentir o que são incapazes de sentir. Existem falsas crenças,
falsas opiniões, falsos tipos de experiências. E há também emoções falsas, que
são o resultado do rebaixamento das formas e da linguagem em que o verdadeiro sentimento pode se enraizar, o que faz com que as pessoas já não estejam plenamente conscientes
da diferença entre o verdadeiro e o falso.
O kitsch é um dos
exemplos mais notáveis desse processo. A obra de arte kitsch não é uma resposta ao mundo, mas um produto destinado a
substituí-lo. Porém, tanto o fabricante quanto o consumidor
tentam se persuadir de que o que sentem na – e por meio da – obra de arte kitsch é algo profundo, importante e
real.
Qualquer um pode mentir. Basta que tenha a intenção de enganar. Mas a falsificação, por sua vez, é uma conquista. Para falsificar algo, você precisa enganar os
outros e também a si mesmo. De certo modo, portanto, as falsificações não podem
ser intencionais, embora ocorram por meio de ações intencionais. O mentiroso
pode fingir que está chocado quando sua mentira é exposta, mas o seu fingimento
é apenas a continuação do seu esforço para nos enganar. Os falsificadores ficam realmente chocados quando são
expostos, uma vez que criaram em torno de si uma comunidade de confiança, da
qual eles mesmos são membros. E parece-me que entender esse fenômeno faz parte da
compreensão de como uma alta cultura funciona e como pode ser corrompida.
Interessamo-nos por alta cultura porque temos interesse pela vida
intelectual e confiamos a vida intelectual a instituições porque ela é um
benefício social. Mesmo que só algumas pessoas sejam capazes de viver essa vida
plenamente, todos nos beneficiamos dos seus resultados, na forma de
conhecimento, tecnologia, entendimento jurídico e político, e na forma de obras de arte,
literatura e música que evocam a condição humana e também nos reconciliam com
ela. Aristóteles vai mais longe e considera a contemplação (theoria) como o propósito último da vida
humana e o ócio (schole) como o meio para
alcançá-lo. Segundo ele, é apenas na contemplação que as nossas necessidades
racionais e nossos desejos são propriamente saciados. Talvez os kantianos preferiram dizer que, na vida intelectual, passamos do mundo dos meios para o
mundo dos fins; que, nela, abandonamos os hábitos do raciocínio instrumental e entramos num mundo onde as idéias, os artefatos e as expressões existem por si mesmos,
como objetos de valor intrínseco; um mundo onde nos é concedido, enfim, o verdadeiro
regresso à morada do espírito. Aliás, esse ponto de vista parece estar subentendido nas Cartas sobre a Educação Estética do Homem (1974)
de Friedrich Schiller e intuições similares foram insinuadas pela ideia de Bildung do romantismo alemão: o cultivo da
personalidade como objetivo da educação e base para o currículo universitário.
A atividade intelectual tem seus próprios métodos e gratificações. Ela se firma na verdade, na beleza e no bem, os quais definem entre si o escopo da
reflexão e os objetivos da inquirição séria. Mas cada um desses objetivos pode
ser falseado; e é manifesto que nossas instituições educacionais e culturais, durante a metade do último século, desenvolveram-se no sentido de varrer para fora de si a cultura e o conhecimento genuínos. É importante perguntar por quê.
A maneira mais notável de permitir que erudição e cultura falsas tomem o espaço destinado à vida intelectual é marginalizar o conceito de
verdade. O que pode parecer difícil, a princípio. Afinal, toda afirmação, toda argumentação
busca naturalmente chegar à verdade. Como o conhecimento pode chegar até nós, se
somos indiferentes à verdade do que lemos? Mas é muito simples. Há uma forma de
debate em que se despreza a verdade das palavras do outro, concentrando-se em diagnosticá-las, em descobrir "de onde
elas vêm", em revelar as atitudes emocionais, morais e políticas subjacentes a determinada escolha de palavras. A mania de "buscar o que está por trás" das
palavras do seu oponente tem origem na teoria da ideologia de Karl Marx, segundo
a qual as opiniões, os hábitos de pensamento e as maneiras de ver o mundo são adotados, em situações burguesas, tendo em vista sua função socioeconômica, e
não a sua verdade. A idéia de justiça, por exemplo, que vê o mundo em termos de
direitos e responsabilidades e que atribui a todos suas propriedades e obrigações, foi mais tarde descartada pelos marxistas como parte da
ideologia burguesa. O propósito ideológico do conceito é legitimar "as relações
burguesas de produção", que, desde outra perspectiva, parece violar as próprias
exigências que o conceito de justiça coloca. Portanto, o conceito de justiça
está em conflito consigo mesmo e serve apenas para mascarar uma realidade
social que tem de ser antes compreendida em outros termos – de poderes aos
quais as pessoas estão submetidas e não de direitos que elas reivindicam.
A teoria marxista da ideologia é extremamente controversa e não somente porque se baseia em hipóteses socioeconômicas que já foram desacreditadas. Ela
sobrevive, porém, na obra de Michel Foucault (e de outros intelectuais), notadamente
em A Ordem das Coisas (1966) e nos
seus ensaios espirituosos sobre as origens das prisões e hospícios. Trata-se
de exercícios exuberantes de retórica, cheios de paradoxos e invencionices
históricas, que arrastam o leitor com uma espécie de indiferença jocosa pelos
padrões da argumentação racional. Onde há um argumento, Foucault vê "discursos"; no lugar da verdade, vê o poder. Na visão de Foucault, todos os
discursos obtêm aceitação por expressar, fortalecer e ocultar o poder de quem os sustenta; e aqueles que, de tempos em tempos, percebem esse fato são
invariavelmente presos como criminosos ou trancafiados como loucos – um destino
do qual o próprio Foucault escapou, inexplicavelmente.
A abordagem de Foucault reduz a cultura a um jogo de poder e o
conhecimento a uma espécie de arbitragem na luta incessante entre grupos
oprimidos e opressores. A mudança de ênfase no conteúdo da expressão para o poder que se manifestaria através dela, nos conduz a um
novo tipo de conhecimento, que ignora completamente as questões da verdade e da
racionalidade, porque se permite rejeitá-las como ideológicas em si mesmas.
O pragmatismo do falecido filósofo americano Richard Rorty tem um efeito similar. Ele se volta expressamente contra a idéia de verdade objetiva e oferece uma série de argumentos para que acreditemos que a verdade é algo negociável, que o que importa afinal é de que lado nós estamos. Se uma doutrina é útil para liberar o nosso grupo de um conflito, temos o direito de descartar as alternativas.
O pragmatismo do falecido filósofo americano Richard Rorty tem um efeito similar. Ele se volta expressamente contra a idéia de verdade objetiva e oferece uma série de argumentos para que acreditemos que a verdade é algo negociável, que o que importa afinal é de que lado nós estamos. Se uma doutrina é útil para liberar o nosso grupo de um conflito, temos o direito de descartar as alternativas.
O que quer que se pense de Foucault ou Rorty, não há dúvida de que eles
eram escritores inteligentes e eruditos genuínos, cada qual com uma visão
peculiar da realidade. Eles abriram caminho para falsificações, mas eles mesmos
não as cometeram. A situação dos seus contemporâneos já é bem diferente. Vejamos as
seguintes afirmações:
Esta não é apenas sua situação ‘em
princípio’ (a que ele ocupa na hierarquia de instâncias em relação a
determinada instância: na sociedade, na economia) nem apenas sua situação ‘de fato’ (se, na fase sob consideração,
isso é dominante ou subordinado), mas a
relação dessa situação de fato com essa relação de princípio, ou seja, a
própria relação que torna essa situação de fato uma ‘variação’ da – ‘invariável’ – estrutura, em nominação, da totalidade.
Ou esta:
… é a conexão entre o significante e o significante que permite a elisão
em que o significante instala a ausência-de-ser na relação do objeto, usando o
valor do ‘referir-se de volta’ que a significação possui, para investi-lo com o
desejo que visa à própria falta de suporte.
Essas sentenças são de autoria do filósofo francês Louis Althusser e do psicanalista francês Jacques Lacan, respectivamente. Esses autores emergiram na efervescência revolucionária de 1968 em Paris e alcançaram uma reputação formidável (não só nos EUA), e a literatura acadêmica faz mais referência a eles do que a Kant e Goethe somados. É evidente, porém, que essas afirmações são nonsense. O pretenso conhecimento erudito e a pose de scholar desses autores intimidam o critico e mantêm suas defesas fortificadas contra o ataque da crítica. Eles ilustram um tipo peculiar da Novilíngua acadêmica: cada afirmação enrola-se em torno de si mesma, como uma unha encravada em forma de espiral – dura, feia, apontando para si mesma.
O pseudo-intelectual nos convida a participar do seu auto-engano e da
criação de um mundo de fantasia. Ele é o professor do gênio, nós somos o
brilhante pupilo. A falsificação é uma atividade social em que, juntas, as
pessoas colocam um véu sobre as realidades indesejadas e incentivam-se umas às
outras no exercício de suas capacidades ilusórias. A entrada do pensamento e do
conhecimento falsos em nossas universidades, porém, não deveria ser atribuída a
algum engodo explicitamente deliberado. Ela decorre da cumplicidade na abertura de território à propagação do nonsense.
Esse tipo de nonsense é uma proposta
a ser aceita. Ele espera a resposta: ó
céus, você está certo, é assim mesmo. E se, para conquistar sua carreira
academia, você aprendeu a se valer desses mantras absurdos feitos por impostores, combinando-os numa
sintaxe impenetrável, que ludibria tanto quem os compõe quanto quem os lê, você certamente
vai indignar-se tudo o que eu disse até agora e não vai
querer ler o resto.
ALGUÉM PODERIA RESPONDER que pouco importa a ascensão do pseudo-conhecimento e da pseudo-filosofia. Que essas coisas podem ser confinadas dentro do seu domicílio
natural, que é a universidade, e que fazem pouca diferença para a vida das
pessoas comuns. Pois, quando pensamos em alta cultura e sua importância, tendemos a nos voltar, não para a erudição ou para a filosofia, mas para
a arte, a literatura e a música – atividades que estão apenas acidentalmente
ligadas à universidade e que influenciam a qualidade de vida e os propósitos
das pessoas fora da academia.
A arte adquiriu nova relevância durante o período romântico. Uma vez que a
religião havia perdido seu apelo emocional, a postura de distanciamento
estético ofereceu um caminho alternativo à busca de significado no mundo. Para os
românticos, a obra de arte era o resultado de uma experiência única e
insubstituível, e encerrava a revelação – refinada pelo esforço individual e
pelo gênio artístico – de um significado único em si. O culto do gênio conferiu
à arte um novo lugar no centro da vida intelectual, de modo que surgiram disciplinas
acadêmicas, como história da arte e musicologia, ao lado da crítica literária e
do estudo da poesia. Juntas, essas atividades emprestaram credibilidade às
belas-artes enquanto objetos de estudos e foram a porta de entrada para outro tipo
de conhecimento – o conhecimento do coração. Dentre todas elas, a conquista
mais importante foi o senso da obra de arte enquanto gesto original, uma revelação de uma personalidade única que
rompera com todas as formas de expressão convencionais para propiciar uma
experiência direta do seu eu interior.
Portanto, o culto do gênio deu ênfase à originalidade, entendida
como a pedra de toque da genuinidade artística – o teste que distinguiria a
arte verdadeira da falsa. Embora seja difícil dizer em termos gerais em que
consista a originalidade, os exemplos de Ticiano, Rembrandt, Corot, Matise e
Gauguin; de JS Bach, Beethoven, Wagner e Schoenberg; de Shakespeare, Diderot,
Goethe e Kleist permitiram que os críticos e os artistas compreendessem também essa idéia geral. O que esses exemplos deveriam nos
ensinar, porém, é que a originalidade é difícil de ser alcançada: não podemos pegá-la no ar, mesmo que prodígios natos como Rimbaud e Mozart pareçam demonstrar
o contrário. A originalidade exige o aprendizado, o trabalho duro, o domínio
dos instrumentos, mas, acima de tudo, uma sensibilidade refinada e uma abertura
à experiência cujo preço comum é o sofrimento e a solidão.
O pintor francês Henri Matisse em sua casa, a quinta ‘Le Rêve’, em 1944.
Foto de Henri Cartier-Bresson/Magnum
Curiosamente, a pseudo-arte que é endossada, hoje, pelos nossos museus e
galerias surgiu do receio falsificar a arte: fugindo de um tipo
de falsidade, os artistas criaram outra. Esse fenômeno começou entre os
modernistas, que trabalharam na direção contrária da arte sentimental dos seus dias. Os primeiros modernistas – Stravinsky e Schoenberg na música,
Eliot e Yeats na poesia, Gauguin e Matisse na pintura, Loos e Voysey na
arquitetura – acreditavam que o gosto popular havia se corrompido, que o
trivial e o kitsch tinham invadido os domínios da arte e eclipsado suas mensagens. As harmonias tonais haviam sido banalizadas pela música popular; a pintura figurativa havia sido superada pela
fotografia; o ritmo e a métrica eram coisas de cartões de natal; as narrativas já haviam sido recontadas inúmeras vezes. Tudo que estava lá fora, no mundo das pessoas ingênuas e irrefletidas,
era kitsch.
O modernismo tentou resgatar a sinceridade, a veracidade, a conquista
árdua, da epidemia das emoções artificiais. Ninguém pode duvidar de que os
primeiros modernistas obtiveram êxito neste empreendimento, legando-nos grandes
obras de arte que mantêm vivo o espírito humano nas novas circunstâncias da
modernidade e estabelecem uma continuidade entre as grandes tradições da nossa
cultura. Mas o modernismo também cedeu lugar a uma versão banalizada de si: a
difícil tarefa de conservar a tradição revelou-se menos atraente do que as
formas baratas de lançar desprezo sobre ela.
Desde aqueles dias até hoje, vigora a idéia de que a única forma criação
autêntica na grande arte é um tipo de "provocação" à cultura publica. A arte deve
ofender, afirmar-se contra o conformismo e o conforto burgueses, que são
simplesmente outros nomes para kitsch e clichê. O resultado, porém, é que a ofensa em si mesma se torna um clichê. Se
o publico se torna tão imune ao choque que só um tubarão morto em formol despertará um breve espasmo de indignação, então o artista tem de produzir esse tubarão
– ao menos é um gesto autêntico. Em vez da "tradição do
novo", do falecido crítico de arte americano Harold Rosenberg, nós temos agora o "clichê da transgressão" – uma repetição do que pretendia ser único.
Os grandes modernistas tinham uma consciência muito aguda da necessidade
de construir para o público cujas expectativas eles haviam frustrado, pontes que o ligassem a seu passado.
Eles acabaram – como Eliot, Picasso e Stravinsky – amados por aqueles que
prezam pela alta cultura tradicional. Mas eles começaram a se tornar difíceis de compreender – e de propósito – para que pudesse existir uma defesa
eficaz do terreno elevado da arte contra o lodaçal do sentimento popular. Daí o dilema que lhes foi colocado pelo crítico de arte americano, Clement
Greenberg, no ensaio Avant-Garde and Kitsch, de 1939, que fez seu nome. A arte, para ser genuína, devia estar à frente
do seu tempo; qualquer descuido significaria uma queda no pântano das falsas
emoções e dos efeitos comerciais.
E porque se tornaram difíceis de compreender, cresceu em torno desses
artistas uma classe de críticos e empresários que oferecia iniciação ao culto
modernista. Essa classe de empresários começou a fomentar o incompreensível e o
ultrajante como algo normal, por receio de que o publico considerasse os seus serviços inúteis. O que alimentou um novo tipo de personalidade,
determinada a mudar conforme a época, compreendendo cada vez menos o que a
época podesse de fato significar. Não é fácil angariar o status de
artista original, mas, numa sociedade em que a arte é reverenciada como a mais alta
realização cultural, as recompensas são enormes. Daí porque há um incentivo
para falseá-la, para formar um círculo de cúmplices: os artistas posando como
criadores de avanços formidáveis, os críticos posando como os examinadores
profundos da verdadeira vanguarda. Observamos esse fenômeno na simbiose entre Greenberg e o impressionismo abstrato de Willem de Kooning.
Outro exemplo pertinente é o compositor John Cage. Com uma habilidade
singular para a autopromoção, embora sem qualquer demonstração prévia de
competência musical, Cage fez sua reputação com a peça célebre 4’33”
(1952) – um evento onde de o pianista, em trajes apropriados para concerto,
permanece sentado no piano, em silêncio, durante exatos 33 segundos. Com base nessa e em
algumas brincadeiras similares, Cage se apresentou como um compositor original, "colocando em xeque" toda a tradição de concertos musicais do ocidente. Os
críticos se apressaram em apoiar a sua elevada autoestima, na esperança de partilhar da glória de ter descoberto um gênio novo e
original. O fenômeno Cage foi rapidamente consagrado como parte da cultura, apto a obter subsídios das instituições de cultura e recrutar uma serie de
imitadores -- para os quais, no entanto, já era tarde demais para causar uma agitação,
como Cage causara sem fazer nada.
Episódios semelhantes ocorreram nas artes visuais, começando com o
urinol de Marcel Duchamp, passando pela serigrafia e pelas caixas Brillo de
Andy Warhol até chegar aos tubarões e vacas em conserva de Damien Hirst. Em
cada caso, os críticos juntaram-se em torno da novidade, como galinhas cacarejando em volta de um ovo imperscrutável, e o embuste foi destinado ao publico com todos
os aparatos requeridos para ser aceito como algo real. Tão poderoso é o
ímpeto para a falsificação coletiva, que agora se exige de fato que os
finalistas do Prêmio Turner na Grã-Bretanha produzam algo que jamais alguém pensaria ser arte, se não lhe dissessem. Por outro lado, o tipo de gesto
original introduzido por Duchamp não pode ser realmente repetido – como as
piadas, ele só pode ser feito uma vez. Daí o fato de encontramos um hábito de
falsificação que está tão profundamente envolto em seus próprios imperativos que qualquer juízo a respeito estaria incorreto, exceto o juízo de que o que está diante de nós é a "coisa real", e não uma falsificação
completa – juízo este que, por sua vez, seria falso.
Para se convencer de que são verdadeiros progressistas, marchando na
vanguarda da história, os novos empresários se cercam de pessoas como eles. Um
empresário promove outro para comissões que sejam relevantes para sua posição,
e espera ser promovido em troca. Assim surgiu o establishment contemporâneo – o círculo auto-suficiente de críticos
e promotores que forma a espinha dorsal de nossas instituições oficiais e semioficiais de cultura. Eles negociam "originalidade", "transgressão" e "aberturas
de novos caminhos". Mas esses termos são clichês, como o são as coisas que eles
costumam enaltecer.
NÃO SÃO APENAS as convicções e as ações que podem ser falseadas. A falsa
emoção tem desempenhado um papel decisivo no desenvolvimento da arte em tempos recentes. A emoção real não admite simulacros e nunca é objeto de barganha ou
de troca. A falsa emoção procura descartar o custo sentimental ao mesmo tempo que é beneficiada por ele. O amante sentimental que desfruta de sentimentos calorosos e da auto-afirmação que resulta do seu amor é também aquele que se dirige rapidamente a outro objeto assim que o primeiro se mostre muito penoso – talvez
porque ele ou ela desenvolveu alguma doença debilitante, porque se tornou
velho, cansado e pouco atraente.
O amor transferido não é amor de verdade e o mesmo se aplica a outras emoções. Tudo isso foi esclarecido por Oscar Wilde em "De Profundis" (1897), sua grande acusação contra o sentimentalista Lord Alfred Douglas, que o havia arruinado.
O amor transferido não é amor de verdade e o mesmo se aplica a outras emoções. Tudo isso foi esclarecido por Oscar Wilde em "De Profundis" (1897), sua grande acusação contra o sentimentalista Lord Alfred Douglas, que o havia arruinado.
A arte kitsch, por sua vez, tem como objetivo colocar a emoção à venda: ela funciona como funcionam as propagandas,
criando um mundo de fantasia, onde tudo, inclusive o amor, pode ser comprado, onde
toda emoção é simplesmente um item numa serie infinita de substitutos. O beijo clichê,
o sorriso de olhar inocente, a sentimentalidade dos cartões de natal: todos
anunciam o que não poderia ser anunciado sem que deixassem de sê-los. Eles
não comprometem o vendedor a nada. Podem ser vendidos ou comprados sem
custos emocionais, pois, sendo produtos da fantasia, já não
existem na forma de compromisso.
O efeito da revolução modernista nas artes foi acusar aqueles que
tentaram ressuscitar a maneira antiga de fazer as coisas – a pintura
figurativa, a música tonal, a arquitetura clássica – de retrocederem na disciplina
autêntica da arte. É claro, você pode
fazer gestos antigos; mas você não pode expressá-los seriamente. E se você o fizer, no entanto, o resultado será o kitsch
– padronizações, mercadorias de baixo custo, produzidas sem esforço e
consumidas sem pensar, do mesmo modo que a musica popular atual.
O receio de se rebaixar ao kitsch transformou o
modernismo em algo rotineiro. Ao posar
como modernista, o artista dá um sinal facilmente perceptível de sua
autenticidade. Mas o resultado é um clichê de outro tipo. Essa é uma das razões
para o surgimento de um empreendimento artístico totalmente novo que alguns
chamam de "pós-modernismo", mas que poderia ser mais bem descrito como "kitsch preventivo".
Tendo reconhecido que o rigor modernista não era mais aceitável, os
artistas deixaram de evitar o kitsch
e passaram a aceitá-lo, tal como Andy Warhol, Allen Jones e Jeff Koons. O pior é ser culpado de produzir o kitsch involuntariamente; bem melhor é produzi-lo deliberadamente, pois, neste caso, não se trata propriamente de kitsch, mas de uma
paródia sofisticada. (A intenção de produzir um kitsch "de verdade" é irrealizável, como a intenção de agir sem intenções. A ingenuidade deliberada é, de fato, faux
naïf.) O kitsch preventivo coloca
o kitsch atual entre aspas, e espera, deste modo, salvar suas credenciais
artísticas. O mesmo fenômeno pode ser discernido na música, com cifras
repetidas baseadas em acordes tonais simples que encontramos em Philip Glass e,
em certa medida, Steve Reich. Em resposta ao argumento de que a tríade é um
clichê, alguns compositores tomaram posse da tríade e a repetiram até que o crítico pudesse ter certeza de que eles estão conscientes de que é um clichê, e de que
eles colocaram a própria atividade da crítica entre aspas.
No lugar do rigor modernista, surge uma
espécie de falsificação institucionalizada. As galerias públicas e as grandes
coleções estão repletas da desordem pré-digerida da vida moderna. Tal arte evita a sutileza, a alusão e a insinuação, e no lugar dos ideais concebidos em ornamentos ela oferece verdadeiros lixos acompanhados de aspas atenuantes. No fim das contas, ela é indiscernível da propaganda – com a única
diferença de que não tem nenhum produto para vender além si mesma.
O kitsch preventivo oferece falsas emoções
e, ao mesmo tempo, finge rejeitar o próprio objeto que oferece. O artista finge
se levar a sério, os críticos fingem julgar seu produto e o establishment modernista
finge promovê-lo. Depois de todo esse fingimento, alguém que não percebe a
diferença entre o anúncio (que é um meio) e a arte (que é um fim) decide que
deve comprar aquilo. Apenas nessa altura a cadeia de fingimentos chega ao fim e
o verdadeiro valor da arte pós-moderna se mostra – isto é, o seu valor de
troca monetária. Mesmo aí, porém, o fingimento ainda é importante. O
comprador deve acreditar que o que ele está comprando é arte verdadeira e que, portanto, tem
valor intrínseco, que pode ser negociado a qualquer preço. Caso contrário, o preço
refletiria o fato óbvio de que qualquer um – quiçá o comprador – poderia ter
falseado um produto como aquele. A essência das falsificações é que são
simulacros de si mesmas, avatares do infinito mise-en-abyme que
está por trás das mercadorias.
O que está exatamente em jogo na escolha
entre o verdadeiro e o falso no domínio da cultura? Podemos continuar a falseá-la infindavelmente? Isso seria preferível àquelas vidas autenticas e
sinceras em que as paixões humanas florescem em sua plenitude descontrolada e
tantas vezes viciosa? Talvez o destino da cultura seja nos introduzir todos em
um sonho de Disneylândia sempre que o perigoso desejo por realidades nos perpassar por dentro. Quando observamos as instituições de cultura nas democracias de
hoje, podemos muito bem nos sentir tentados a pensar que a simulação é a sua finalidade, e que é uma finalidade buscada para o bem de todos.
A cultura, porém, é algo importante. Sem ela
não nos educamos emocionalmente. E há consequências da falsa
cultura que são comparáveis às consequências da corrupção na política. Num
mundo constituído de falsificações, o interesse publico é constantemente sacrificado em prol de uma fantasia privada e as verdades cruciais permanecem abandonadas, sem exame, e desconhecidas. Mas provar esse ponto é uma tarefa difícil,
de fato, e depois passar a vida inteira tentando, eu percebi que estava só no começo.
*Essa tradução foi feita por mim, Hugo. E foi modificada em alguns trechos depois que a confrontei com outra tradução deste mesmo ensaio, feita pelo meu amigo Klauss Tofanetto, ao qual agradeço imenso.
*Essa tradução foi feita por mim, Hugo. E foi modificada em alguns trechos depois que a confrontei com outra tradução deste mesmo ensaio, feita pelo meu amigo Klauss Tofanetto, ao qual agradeço imenso.
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