quinta-feira, 3 de abril de 2014

Beleza e Dessacralização, Roger Scruton

A arte, hoje, está intoxicada de feiúra; e nós precisamos resgatá-la. 


Os grandes paisagistas do Ocidente, como o pintor italiano Francesco Guardi, do século XVIII, captam os chamados da eternidade na transitoriedade.


Em qualquer período, entre 1750 e 1930, se você pedisse a uma pessoa educada que descrevesse o objetivo da poesia, da arte ou da música, a resposta seria "beleza". E, se você lhe perguntasse o que isso quer dizer, você aprenderia que a beleza é um valor tão importante quanto a bondade e a verdade -- na verdade, dificilmente poderíamos separá-la destes atributos. Os filósofos do iluminismo viam a beleza como uma das formas pelas quais os valores morais e espirituais permanentes adquirem forma sensível. E nenhum pintor, músico ou escritor do período romântico negaria que a beleza era o objetivo final da sua arte.

Em algum momento, durante o declínio do modernismo, a beleza deixou de receber essas deferências. A arte visava, cada vez mais, perturbar, subverter ou transgredir certezas morais, e não premiava-se a beleza, mas a originalidade -- alcançada, contudo, qualquer que fosse o custo moral. Na verdade, havia uma suspeita generalizada de que a beleza se aproximava do kitsch -- algo muito doce e inofensivo para um artista moderno sério buscar. Em um ensaio fecundo -- Avant-Garde and Kitsch, publicado em Partisan Review, em 1939 -- o crítico Clement Greenberg traçou um contraste rígido entre a vanguarda do seu tempo e a pintura figurativa que competia com ela, descartando a última (e não apenas Norman Rockwell, mas grandes nomes como Edward Hopper) como secundária e sem significado duradouro. A vanguarda, para Greenberg, promovia a perturbação e a afronta em detrimento da tranqüilidade e do embelezamento, e por isso mesmo é que devíamos admirá-la.

Segundo Greenberg, o valor da arte abstrata não estava na beleza, mas na expressão. A ênfase na expressão foi um legado do movimento romântico; mas agora essa ênfase vinha acompanhada da convicção de que o artista é alguém que está fora da sociedade burguesa, que é definido em oposição a ela, sendo a expressão artística também uma transgressão das normas morais compartilhadas por todos. Encontramos essa postura na arte austríaca e alemã do período entreguerras, quando é adotada abertamente  -- por exemplo, nas pinturas e desenhos de Georg Grosz, na ópera de Alban Berg Lulu (um retrato amoroso de uma mulher cujo único objetivo discernível é o caos moral), e nos romances decadentes de Heinrich Mann. E o culto da transgressão é um dos principais temas da literatura do período pós-guerra na França -- desde os escritos de Georges Bataille, Jean Genet e Jean-Paul Sartre até o vazio desolador do nouveau roman.


Claro, houve grandes artistas que tentaram resgatar a beleza da ruptura nótavel da sociedade moderna -- como TS Eliot tentou recompor, em Four Quartets, os fragmentos de suas lamentações em The Waste Land. E houve outros, particularmente nos EUA, que se recusaram a ver o sórdido e o transgressor como a verdade sobre o mundo moderno. Para artistas como Hopper, Samuel Barber e Wallace Stevens, a pretensa transgressão era mero sentimentalismo, uma maneira barata de estimular a audiência e uma traição ao ofício sagrado da arte, que é ampliar a vida como ela é e revelar a sua beleza -- como Stevens revela a beleza de ‘An Ordinary Evening in New Haven’ e Barber revela a beleza de Knoxville: Summer of 1915. Mas, de algum modo, aqueles que afirmavam grande vitalidade perderam sua posição na linha de frente da cultura moderna. Tanto para os críticos quanto para a cultura mais ampla, a busca da beleza estava fora do empreendimento artístico. Qualidades como desorganização e imoralidade, que antes significavam fracasso estético, tornaram-se sinais de sucesso; ao passo que a busca da beleza fora marginalizada do verdadeiro ofício da criação artística. Esse processo se tornou tão normal que passou a ser tratado como uma ortodoxia crítica, o que levou o filósofo Arthur Danto a argumentar, recentemente, que o propósito da beleza é demasiado ilusório e, de alguma forma, contrário à missão da arte moderna. A arte adquiriu outro estatuto e outro papel social.   

A GRANDE prova dessa mudança está nas produções de ópera, que fornecem aos habitantes da cultura pós-moderna uma oportunidade única para se vingar da arte do passado, escondendo sua beleza por trás de uma máscara obscena e sórdida. Todos nós aceitamos que tal vingança se volte contra Wagner, o qual "merecia", porquanto cresse fortemente no papel redentor da arte. Mas, hoje, ela se volta regularmente contra as pessoas inocentes que produzem objetos belos, tão logo um produtor pós-modernista coloque as suas mãos sobre suas obras. 

Um exemplo que particularmente me impressionou foi a produção de Die Entführung aus dem Serail [O Rapto do Serralho] de Mozart na Komische Oper Berlin 2004[1]. Die Entführung conta a história de Konstanze -- náufraga, separada de seu noivo Belmonte, levada a servir no harém de Paxá Selim. Depois de várias intrigas, Belmonte a resgata, ajudado pela clemência do Paxá -- que, respeitando a castidade de Konstanze e o fiel amor do casal, recusa-se a levá-la à força. Esse enredo inverossímil permite que Mozart expresse sua convicção iluminista na caridade como uma virtude universal, presente tanto no império muçulmano dos turcos quanto no império cristão do iluminista José II. Mesmo que a visão ingênua de Mozart não tenha embasamento histórico, sua convicção no amor desinteressado é expressa e endossada pela música, em todo lugar. Die Entführung desenvolve uma idéia moral, a melodia compartilha da beleza dessa idéia, e a apresenta, persuasivamente, ao ouvinte.


Em sua produção de Entführung, o diretor de teatro catalão Calixto Bieito situa a ópera em um prostíbulo de Berlim, onde Selim é um cafetão eKonstanze uma das prostitutas. Mesmo durante o trecho de música mais suave, casais entram no palco copulando, estabelecendo a desordem, e cada oportunidade para atos de violência – com ou sem clímax sexual – é aproveitada. A certa altura, uma prostituta é torturada gratuitamente, seus mamilos são contados e sangrados de modo realista antes de sua morte. As palavras e a música falam de amor e compaixão, mas sua mensagem é abafada por cenas de profanação, assassinato e sexo narcisista.


Esse exemplo mostra algo que está presente em todos aspectos da nossa cultura contemporânea. Não é que apenas os artistas, os diretores, os músicos e as outras pessoas ligadas às artes estejam esquivando-se da beleza. Onde quer que a beleza esteja esperando por nós, surge um desejo de interceptar o seu apelo, para sufocá-lo com cenas de destruição. Eis porque muitas obras de arte contemporâneas fiam-se no escândalo que causam à nossa falta de fé na natureza humana – tal como o crucifixo imerso em urina de Andres Serrano. Eis porque são abundantes as cenas de canibalismo, desmembramento e sofrimento sem sentido, no cinema contemporâneo, onde diretores como Quentin Tarantino têm pouco mais que isso em seu repertório. Daí porque a música popular foi invadida pelo rap, cujas palavras e ritmos falam da violência incessante, e rejeitam a melodia, a harmonia ou qualquer outro expediente que faça uma ponte com o mundo antigo das canções. Daí a existência videoclipes, que se tornaram, por si mesmos, uma forma de arte e que, com freqüência, têm a finalidade de concentrar, no intervalo de tempo de uma canção popular, algum novo relato surpreendente de caos moral.


Esses fenômenos registram um hábito de dessacralização em que a vida não é celebrada, mas visada pela arte. Os artistas, hoje, podem fazer suas reputações produzindo um quadro original em que exibem o rosto humano e lhe enchem de merda. O que fazer diante disso, e como encontramos o caminho de volta à experiência pela qual as pessoas tanto anseiam, que é a visão da beleza? Falar de uma "visão da beleza" pode parecer um pouco sentimental. Não me refiro, aqui, a algo adocicado ou à vida humana estampada em cartões de natal, mas, pelo contrário, a formas elementares através das quais os ideais e as boas maneiras entram em nosso mundo cotidiano e se dão a conhecer, como o amor e a caridade dão-se a conhecer na música de Mozart. Em nosso mundo há uma grande fome por beleza, uma fome que a nossa arte popular não consegue identificar e que a nossa arte séria muitas vezes desafia.


EU USEI a palavra "profanação" para descrever a postura que nos é transmitida pela produção de Bieito de Die Entführun e pelos esforços capengas de Serrano para fazer algo significativo. O que exatamente está implicado nessa palavra? Ela está ligada, etimológica e semanticamente, com sacrilégio, e, portanto, com as ideias de santidade e sagrado. Profanar algo é degradar o que, de outra maneira, poderia estar colocado à parte, na esfera dos objetos sagrados. Nós podemos profanar uma igreja, um cemitério, um túmulo; e também uma imagem sagrada, um livro ou uma cerimônia sagrados. Podemos profanar um cadáver, uma imagem querida, até mesmo um ser humano vivo – na medida em que essas coisas contenham (e, de fato, contêm) o arroubo de uma santidade original. O receio de profanar é um elemento crucial em todas as religiões. Na verdade, é isso o que a palavra religio significa, originariamente: um culto ou uma cerimônia destinada a proteger um local sagrado do sacrilégio.


A ideia de sacralidade foi eclipsada, no século XVIII, enquanto a religião organizada e as solenidades reais perdiam sua autoridade, o espírito democrático questionava as instituições que nos foram legadas por nossos antepassados, e a ideia disseminada era a de que o homem, e não Deus, é quem cria a leis do mundo humano. Para os pensadores do iluminismo, parecia quase uma superstição acreditar que os artefatos, as construções, os lugares e as cerimônias pudessem encerrar um caráter sagrado, pois lhes pareciam simples produtos do desígnio humano. A ideia de que a divindade se revela em nosso mundo e solicita a nossa adoração, parecia tanto inverossímil em si mesma quanto incompatível com a ciência.


Ao mesmo tempo, filósofos como Shaftesbury, Burke, Adam Smith e Kant reconheceram que nós não observamos o mundo apenas com os olhos da ciência. Existe outra atitude – que não é a da inquirição científica, mas a da contemplação desinteressada – em que observamos o nosso mundo em busca de seu significado. Quando adotamos essa postura, nós colocamos os nossos interesses de lado; já não estamos ocupados com os objetivos e os projetos que nos impulsionam incessantemente; não estamos mais empenhados em explicar as coisas ou em aumentar as nossas capacidades. Estamos deixando que o mundo se faça presente e estamos nos sentindo confortáveis com a sua presença. Tal é a origem da experiência da beleza. Pode ser que essa experiência seja incompatível com a nossa busca cotidiana por poder e conhecimento. Pode ser que seja impossível absorvê-la no uso diário de nossas faculdades. Mas é uma experiência que existe de modo auto-evidente e que é muito valorizada por quem passa por ela.


QUANDO OCORRE esse tipo de experiência? O que ela significa? Eis um exemplo: imagine que você está voltando para casa sob a chuva e sua mente se ocupa do trabalho. As ruas e as casas passam despercebidas; as pessoas também passam por você; nada acomete os seus pensamentos, exceto seus interesses e ansiedades. Então, de repente, o sol surge no meio das nuvens, e um raio de luz pousa, vibrante, sobre um velho muro de pedras ao seu lado. Você olha para o céu, onde as nuvens estão se separando, e um pássaro irrompe a cantar no jardim, atrás do muro. Seu peito se enche de alegria e seus pensamentos egoístas são dissipados. O mundo está na sua frente e você se contenta por simplesmente olhá-lo e aceitá-lo como tal.

Talvez essas experiências sejam mais raras hoje do que no século XVIII, quando os poetas e filósofos as enxergavam como um novo caminho para a religião. A pressa e a desordem da vida moderna, as formas alienantes da arquitetura moderna, o ruído e a poluição da indústria moderna – esses fenômenos tornaram o simples encontro com a beleza algo mais raro, mais frágil e imprevisível, para nós. Ainda assim, todos nós sabemos o que é ser transportado, subitamente, pelos objetos que vemos, desde o mundo ordinário de nossos apetites até uma esfera iluminada de contemplação. Essa experiência acontece muitas vezes durante a infância, ainda que raramente a interpretemos, naquela altura. Ela acontece durante a adolescência, quando se presta a nossos anseios eróticos. E acontece de maneira mais limitada na vida adulta: ela molda secretamente os nossos projetos de vida, fornece-nos uma imagem de harmonia que buscamos por meio das festividades, da construção do lar e dos nossos sonhos pessoais.


Eis outro exemplo: trata-se de uma ocasião especial, em que a família se reúne para um jantar formal. Você arruma a mesa com um tecido bordado limpo, arranja os pratos, os copos, algumas garrafas de água e vinho, e coloca pães numa cesta. Você o faz com amor, deleitando-se com a aparência, esforçando-se para produzir um efeito de limpeza, simplicidade, simetria e calor. A mesa se tornou um símbolo do encontro familiar, dos braços estendidos da mãe universal que convida seus filhos para entrar. Toda essa riqueza de significado e de bom ânimo está encerrada na aparência da mesa. Esta é, pois, outra experiência da beleza que encontramos, de um modo ou de outro, todos os dias. Nós somos criaturas necessitadas, e a nossa maior necessidade é a de ter um lar – um lugar onde permanecemos, onde encontramos proteção e amor. Nós formamos um lar expressando a nossa própria pertença, não sozinhos, mas em conjunto. Todas as tentativas de conferir boa aparência ao nosso ambiente – pela decoração, pelo arranjo, pela criatividade – são tentativas de dar boas-vindas a nós mesmos e àqueles que amamos.


Esse segundo exemplo sugere que a necessidade de beleza não é apenas um acréscimo supérfluo à gama de apetites humanos. Não podemos, sem ela, nos realizar como pessoas. É uma necessidade que surge da nossa própria condição metafísica de indivíduos livres, em que buscamos o nosso lugar num mundo objetivo. Nós podemos vagar por este mundo, alienados, ressentidos, cheios de suspeita e desconfiança. Ou podemos encontrar, aqui, o nosso lar, e obter repouso ao estar em harmonia com os outros e conosco mesmos. A experiência da beleza nos leva a esse segundo caminho: ela nos diz que estamos em casa no mundo, que o mundo já está enquadrado em nossas percepções como um lugar apropriado para a vida de seres como nós.


Observe qualquer pintura de um dos grandes pintores paisagistas – Pousssin, Guardi, Turner, Corot, Cézanne – e você verá a ideia da beleza celebrada e fixada em imagens. A finalidade da arte da pintura de paisagens, que surgiu no século XVII e perdura até os dias de hoje, é conferir à natureza um aspecto moral e mostrar o domínio da liberdade humana dentro da ordem geral das coisas. Não é que os pintores paisagistas fechem seus olhos para o sofrimento ou para a vastidão e para o caráter ameaçador do universo, no qual ocupamos um canto tão pequeno. Longe disso. Os pintores paisagistas nos mostram a morte e a decadência no próprio âmago das coisas: a luz de suas colinas é uma luz enfraquecida; as paredes de estuque das casas de Guardi são mosqueadas e estão se desfazendo. Mas suas imagens apontam para a alegria que está incipiente no declínio e para a eternidade implícita na transitoriedade. São imagens de um lar.



Não é de espantar que a ideia da beleza tenha deixado os filósofos perplexos. A experiência da beleza é tão viva, tão imediata, tão pessoal, que dificilmente pode ser vista como parte da ordem natural, tal como analisada pela ciência. Mas a beleza se faz cintilar sobre nós desde os objetos mais comuns. Ora, ela é uma característica do mundo ou uma invenção da imaginação? Ela nos transmite algo de real e verdadeiro e pode ser reconhecida mediante uma experiência tão simples? Ou é apenas uma intensa sensação de momento, sem qualquer significação para além do deleite pessoal de quem a experimenta? Tais questões são de grande urgência para nós, pois vivemos numa época em que a beleza está em eclipse: uma sombra negra de escárnio e alienação se arrasta por toda a superfície (outrora brilhante) de nosso mundo, como a sombra da terra cobre a lua. Quando procuramos a beleza, freqüentemente encontramos escuridão e dessacralização.

Os artistas modernos como Otto Dix  frequentemente chafurdam-se na baixaria e na ausência de amor.

O hábito atual de profanar a beleza sugere que as pessoas estão tão conscientes, hoje, quanto sempre estiveram, da presença de objetos sagrados. A dessacralização é uma espécie de defesa contra o sagrado, uma tentativa de destruir o seu apelo. Na presença de objetos sagrados, as nossas vidas são julgadas, e, para escapar ao seu julgamento, nós destruímos as coisas que parecem nos acusar.


Os cristãos herdaram de Santo Agostinho e Platão a visão deste mundo transitório como um símbolo de outra ordem imutável. Eles entendem o sagrado como uma revelação, no aqui e agora, do sentido eterno do nosso ser. Mas a experiência do sagrado não está confinada aos cristãos. De acordo com muitos filósofos e antropólogos, ela é um traço humano universal. A vida da maior parte das pessoas é ditada por objetivos transitórios: a rotina diária é constituída de motivações econômicas, de busca por conforto e poder imediatos, da necessidade de lazer e prazer. Quase nada, aí, é digno de ser lembrado ou nos toca profundamente. De vez em quando, porém, somos retirados do nosso estado de complacência e nos sentimos na presença de algo muito mais importante do que os nossos interesses e desejos momentâneos. Sentimos que uma realidade preciosa e misteriosa nos atinge com um clamor que, de alguma maneira, não é deste mundo. O mesmo acontece na presença da morte, especialmente na morte de alguém que amamos. Nós olhamos, admirados, o corpo humano do qual a vida se esvaiu. Ele já não é uma pessoa, mas os seus "restos mortais". E esse pensamento nos preenche com um senso de estranheza. Ficamos relutantes em tocar o corpo morto; de certo modo, nós o enxergamos como algo que, propriamente, não faz parte deste mundo, quase como um visitante de outra esfera.


Essa experiência, que é um paradigma do nosso encontro com o sagrado, exige uma espécie de reconhecimento cerimonial da nossa parte. O corpo sem vida é objeto de rituais e de atos de purificação, concebidos não apenas para enviar o seu extinto dono, feliz, para a vida após a morte – pois essas práticas são realizadas mesmo por aqueles que não acreditam em vida após a morte –, mas para superar o espanto e o assombro (atributos sobrenaturais) diante da forma humana morta. O corpo é recuperado por este mundo através de rituais que reconhecem também que ele é uma realidade à parte. Dito de outro modo: os rituais consagram o corpo e, assim, o purificam do seu estado de putrefação. Por esse motivo é que o corpo pode ser profanado – e este é, sem dúvida, um dos principais atos de profanação, ao qual as pessoas se sentiram tentadas desde os tempos imemoriais, como quando Aquiles, triunfante, arrasta o corpo de Heitor ao redor das muralhas de Tróia.


Há outras ocasiões em que a presença de um apelo transcendente também nos arrasta para fora das nossas preocupações cotidianas. Por exemplo, na experiência de estar apaixonado. Também essa experiência é uma necessidade humana universal que nos causa estranhamento. O rosto e o corpo da pessoa amada estão imbuídos de uma vivacidade intensa. Mas, sob um aspecto fundamental, eles são como o corpo de um morto: parecem não pertencer ao mundo empírico. Aquele que é amado olha para quem o ama como Beatriz olhava para Dante: de um patamar que transcende o fluxo das coisas temporais. O objeto de amor exige que o estimemos e que nos aproximemos dele com uma reverência quase ritualística. E através dos olhos, lábios e palavras há uma espécie de plenitude do espírito que tudo renova.


Os poetas gastaram milhares de palavras para descrever essa experiência que palavra alguma parece exprimir totalmente. É uma experiência sustentou o senso do sagrado ao longo dos séculos, e fez com que pessoas tão diferentes, como Platão e Calvino, Virgílio e Baudelaire, se lembrassem de que o desejo sexual não é o simples apetite que observamos nos animais, mas a matéria prima de um desejo que não pode ser satisfeito de modo fácil ou mundano, e que exige de nós – nada mais, nada menos – uma mudança de vida.


BOA PARTE da feiúra que é cultivada em nosso mundo, hoje, remonta às duas experiências que eu assinalei. O corpo nos estertores da morte; o corpo nos estertores do sexo – os dois podem nos fascinar, sem dificuldades. Somos fascinados pela dessacralização da forma humana, quando nos mostram o corpo humano como um mero objeto entre outros, o espírito humano ofuscado e ineficaz, o homem como um ser derrotado por forças externas, e não como um sujeito livre limitado pela lei moral. E a arte dos nossos tempos parece se concentrar sobre este tipo de coisa, oferecendo-nos, não só pornografia sexual, mas uma pornografia da violência, que reduz o ser humano a um pedaço de carne que padece, indefeso, de forma lamentável e repugnante.


Todos nós temos um desejo de escapar das imposições de uma existência responsável, em que tratamos uns aos outros como pessoas dignas de reverência e respeito. Todos nós somos tentados pela ideia da carne e pelo desejo de transformar o ser humano em pura matéria – um autômato que obedece a desejos mecânicos. Para nos render a essa tentação, no entanto, precisamos, primeiro, remover o seu principal obstáculo: a natureza consagrada da forma humana. Precisamos macular as experiências – como as da morte e do sexo – que de outro modo nos conduziriam para longe dessas tentações, em direção de uma vida mais elevada e constituída de sacrifícios. Essa dessacralização consciente prejudica também o amor – é uma tentativa de refazer o mundo como se o amor já não existisse nele. E esta é, sem dúvida, a característica mais importante da cultura pós-moderna: uma cultura sem amor, determinada a retratar o mundo humano como indigno de ser amado. O diretor de teatro moderno que despoja violentamente as obras de Mozart está tentando destruir o amor que está no cerne destas obras, para confirmar a sua visão do mundo como um lugar onde só o prazer e a dor são reais.


Isso nos sugere uma solução simples: resistir à tentação. Em vez de profanar a forma humana, devemos aprender a reverenciá-la. Pois não ganhamos nada, absolutamente, com os insultos lançados sobre a beleza por aqueles que – como Calixto Bieito – não agüentam encará-la de frente. Claro, podemos neutralizar os ideias elevados de Mozart colocando a sua música em segundo plano, de modo que se torne o mero acompanhamento de um carnaval desumano, repleto de sexo e morte. Mas o que apreendemos com isso? O que ganhamos, em termos de crescimento emocional, espiritual, intelectual e moral? Nada, exceto ansiedade. Devíamos apreender uma lição com esse tipo de dessacralização: ao tentar nos mostrar que os nossos ideais humanos não têm valor, ela própria se mostra sem valor. E quando algo se mostra sem valor, é hora de jogá-lo fora.


É CLARO, portanto, que a cultura da transgressão jamais alcança resultado algum, exceto este: a perda da beleza como um valor e um fim. Mas por que a beleza é um valor? Trata-se, aqui, de uma visão antiga segundo a qual a verdade, a bondade e a beleza não podem ser antagônicas, em última análise. Talvez a beleza tenha se degradado em kitsch precisamente porque, no pós-modernismo, perdeu-se a noção de veracidade e, conseqüentemente, de direção moral. Essa é a mensagem que nos transmitem os primeiros modernistas – Eliot, Barber e Stevens – e que precisamos ouvir.


Para oferecer uma resposta satisfatória ao hábito de dessacralização, precisamos descobrir as afirmações e as verdades vitais sem as quais as belezas artísticas não podem ser realizadas. O que não é uma tarefa fácil. Se observarmos os verdadeiros defensores da beleza em nossos tempos – penso em compositores como Henri Dutilleux e Olivier Messiaen, em poetas como Derek Walcott e Charles Tomlinson, em prosadores como Italo Calvino e Aleksandr Solzhenitsyn – impressionamo-nos, de imediato, diante da imensidão do trabalho árduo, do estudo solitário e da atenção aos detalhes que caracterizam seu ofício. Na arte, a beleza tem de ser conquistada, mas o trabalho se torna mais difícil à medida que o puro ruído de dessacralização – ampliado agora pela Internet – abafa a voz silenciosa que murmura no âmago das coisas.


Uma resposta possível é olhar para a beleza em suas formas mais cotidianas – a beleza das ruas residenciais, dos rostos alegres, dos objetos naturais e das paisagens agradáveis. É possível, também, poluir essas coisas, e este é o propósito do artista de segunda categoria ao atrair nossa atenção para esse caminho – a via negativa da dessacralização. Mas é possível, também, retornar aos objetos mais simples como faziam Wallace Stevens e Samuel Barber – mostrando que nos sentimos familiarizados com eles e que eles ampliam e justificam a nossa existência. Esse é um caminho que nos foi aberto pelos primeiros modernistas – a via positiva da beleza. E não há razão alguma para pensar que devamos abandoná-lo.

[1] Ver "The Abdution of Opera", http://www.city-journal.org/html/17_3_urbanities-regietheater.html

Um comentário:

  1. Boa tarde. Tudo bem?
    Bacana seu blog. Outro dia desses também pensei em traduzir alguns textos do Roger Scruton mas fiquei sem saber como entrar em contato com ele. Como você fez? Para qual e-mail mandou o pedido?
    Abraço.

    ResponderExcluir