Verão de 2010
A nossa auto-imagem, e as relações humanas de modo geral, foram profundamente afetadas
pela Internet e pela facilidade com que as imagens das
outras pessoas podem ser chamadas à tela do computador para se tornarem
objetos de atenção emocional. Como nós devemos conceituar essa mudança, e qual
é o seu efeito na condição psicológica daqueles mais inclinados a construir seu
mundo de interesses e relacionamentos através de uma tela? Essa mudança é
tão prejudicial quanto querem nos fazer acreditar? Ela debilita a nossa capacidade
de nos relacionar verdadeiramente com os outros, substituindo-a por uma mera afinidade imaginária?
Ou é relativamente inofensiva, tão inocente quanto falar ao telefone com
um amigo?
Primeiro,
temos de fazer algumas distinções. Todos nós usamos o computador para enviar
mensagens aos nossos amigos e às pessoas com quem nos relacionamos. Esse tipo
de comunicação não é diferente em qualquer aspecto fundamental da prática
antiga de escrever cartas, exceto por sua velocidade. Claro, não devemos
considerar a velocidade um recurso trivial. A rapidez das comunicações modernas
não acelera apenas o processo pelo qual os relacionamentos são formados e
rompidos; ela muda inevitavelmente a maneira como essas relações são realizadas
e compreendidas. Com a Internet e o telefone, a ausência é menos dolorosa, mas também perde algo da sua pungência; demais, os emails são
raras vezes compostos tão cuidadosamente como as cartas, pois a própria
lentidão com que a carta caminha ao seu destino nos impele a colocar
mais dos nossos sentimentos nas palavras. Entretanto, o email é uma realidade, e não só uma realidade virtual: as mudanças que ele traz afetam comunicações
reais travadas entre pessoas reais.
Mas
a existência de redes sociais como o Facebook -- onde boa parte da
comunicação também é real e entre pessoas reais -- não envolve qualquer
tentativa de simplesmente substituir uma realidade virtual por uma actual. Ao
contrário, elas parasitam os relacionamentos reais que engendram, alterando-os, em grande medida, ao incentivar as pessoas a se colocarem em exibição, e a
tornarem-se voyeurs da exibição dos outros. Alguém pode alegar que
a existência desses sites de redes sociais propicia um beneficio social e
psicológico, e ajuda aqueles que evitam se apresentar diretamente ao
mundo, a ganharem um espaço público e uma identidade. Tais sites também
permitem que as pessoas mantenham contato com um vasto círculo de amigos e
colegas, de modo a aumentar o leque de suas afeições, e a espalhar pelo mundo bons sentimentos e
boa vontade.
Porém,
algo de novo já está entrando no mundo das relações humanas com esses sites
aparentemente inofensivos. Há uma nova facilidade com que as pessoas podem fazer
contato umas com as outras por uma tela. Não há mais necessidade de se
levantar da sua cadeira e fazer uma viagem à casa do seu amigo. Não há mais
necessidade de reuniões semanais, ou do círculo de amigos no restaurante do
centro da cidade ou no bar. Todas essas maneiras de fazer contato que demandam
esforço podem ser dispensadas com um simples toque no teclado, que pode te levar para onde
você queria estar, no site que define quem são os seus amigos. Mas como algo que é buscado e desenvolvido de
maneira tão fácil e sem custos pode ser uma amizade real?
Amizade e controle
A
amizade real mostra-se na ação e na afeição. O amigo verdadeiro é aquele que
oferece resgate nas suas horas de necessidade, conforto na adversidade e que
compartilha com você o sucesso que ele mesmo obteve. O que é difícil
de realizar no computador –- afinal de contas, trata-se aqui, em primeiro lugar, de um espaço para informação, que é apenas um espaço para ação na medida em
que a comunicação é uma forma de ação. Somente as palavras, e não a mão ou as
coisas que ela carrega, podem, em tais condições, confortar aquele que sofre, afastar um golpe
do inimigo ou fornecer qualquer um dos benefícios tangíveis da amizade em
tempos de necessidade. Alguém poderia argumentar que, geralmente, as pessoas satisfazem a sua necessidade de companheirismo em relacionamentos
realizados através de computadores, a não ser que se trate de desenvolver amizades do
tipo que oferece ajuda e conforto nos testes reais da vida humana. As amizades
realizadas primariamente no computador não podem ser facilmente rompidas, e se
o são, não há qualquer garantia de que não haverá tensão. Na verdade, é
precisamente o custo-livre dessas amizades, a sua característica tela-amigável,
que atrai muitas pessoas –- tanto é assim que os meus alunos dizem
que temem o vício, e freqüentemente proíbem-se de acessar sua
conta Facebook por dias a fio, para continuar com suas
vidas e relacionamento reais.
O
que nós estamos testemunhando é uma mudança na atenção que faz
mediação e dá origem à amizade. Nas condições outrora normais do contato
humano, as pessoas se tornavam amigas estando em presença umas das outras,
compreendendo os vários sinais sutis, verbais e corporais, pelos quais o outro
atesta o seu caráter, emoções e intenções, construindo afeição e
confiança em conjunto. A atenção estava fixada no outro –- no seu rosto,
palavras e gestos. E a sua natureza enquanto pessoa encarnada inspirava sentimentos amigáveis que eram o foco da relação. As pessoas que constroem amizades
dessa maneira estão fortemente conscientes de que se mostram ao outro como este se lhes mostra. O rosto do outro é um espelho em que elas vêem os seus
próprios rostos. Precisamente porque a atenção está fixada no outro há uma
oportunidade para o autoconhecimento e para a auto-descoberta, para essa expansão da
liberdade na presença do outro que é uma das maiores alegrias da vida humana.
O objeto de sentimentos humanos olha de volta a você, e responde amigavelmente
à sua atividade livre, ampliando tanto a sua consciência como a dele mesmo.
Tal como tradicionalmente concebida, a amizade era regida pela máxima
“conhece-te a ti mesmo”.
Quando
a atenção está fixada no outro como alguém que é intermediado pela tela, no
entanto, há uma forte mudança de ênfase. Para começar, eu tenho o meu dedo no
botão; a qualquer momento eu posso desligar a imagem, ou clicar para realizar
um novo encontro. A outra pessoa é livre no seu próprio espaço, mas não é realmente livre no meu espaço, onde eu sou o árbitro
último. Eu não estou me arriscando em uma amizade na
mesma medida em que eu me arrisco quando eu encontro outra pessoa face a face. É claro, essa pessoa pode então prender minha atenção com suas
mensagens, imagens e pedidos de que eu permaneça grudado na tela. Mas, em
última análise, trata-se de uma tela à qual eu
estou grudado, e não do rosto que eu vejo nela. Toda interação com outrem se
dá a certa distância, e ser afetado por ela se torna até certo ponto uma
questão de minha própria escolha.
Nessa
maneira cibernética de conduzir relacionamentos, eu gozo de um poder sobre o
outro do qual ele mesmo não está realmente consciente –- uma vez que não está
consciente do quanto eu desejo retê-lo no espaço diante de mim. E o poder que
eu tenho sobre ele, ele o tem sobre mim: a mesma liberdade que me foi negada no
seu espaço é-lhe negada no meu. Ele também, portanto, não vai se arriscar; ele
aparece na tela apenas com a condição de manter o controle final sobre si
mesmo. Isso é algo que eu sei sobre ele e que ele sabe que eu sei –- e
vice-versa. Ali, cresce entre nós um encontro de risco reduzido, em que cada um
está consciente de que o outro está fundamentalmente retido, soberano
em seu castelo cibernético inexpugnável.
Mas
essa não é a única maneira pela qual os relacionamentos cibernéticos são
afetados pelo meio em que se formam. Por exemplo, enquanto a troca de mensagens está muito intensa no Facebook, boa
parte dela é despersonalizado por natureza: o uso de mensagens privadas, para
muitos, foi suplantado por postagens de mensagens num “mural” público de um
amigo, o que significa que a rede inteira é agora participante na comunicação.
E enquanto a postagem no mural ainda mantém a aparência de contato impessoal,
provavelmente a forma mais comum de comunicação no Facebook é
a “atualização de status”, uma mensagem que é difundida por uma pessoa a todas
as outras (ou, dito de outro modo, a ninguém em particular).
Todas
essas formas de comunicação aparecem em competição com tudo o mais que possa ser ativado pelo mouse. Você “clica” no seu amigo, assim como você pode clicar numa notícia ou
num vídeo clipe. Ele é apenas um dentre os muitos produtos em exposição.
Tornar-se amigo dele, e relacionar-se com ele de modo geral, pertence à
categoria dos divertimentos e das distrações: uma mercadoria que pode ser
escolhida ou não, dependendo das concorrentes. Isso contribui para uma
demolição radical dos relacionamentos pessoais. Suas amizades já não são mais
especiais para você ou definitivas para a sua vida moral: elas são
diversões, objetos que não têm vida real em si mesmos, mas a vida que têm é emprestada do interesse que você tem por elas –- o que os marxistas chamariam
“fetiches”.
Há
um argumento forte a ser feito, aqui, segundo o qual a experiência
do Facebook, que
atrai milhões de pessoas de todo o mundo, é um antídoto contra a timidez, uma
maneira pela qual as pessoas, que de outra maneira estariam paralisadas pelo
temor de se arriscar na vida social, são capazes de superar sua incapacidade e
desfrutar da rede de relações afetivas da qual tanto depende a nossa felicidade.
Mas há o argumento igualmente forte de que a experiência Facebook -- na
medida em que está suplantando o domínio físico das relações humanas --
hipotastiza a timidez, conserva suas principais características e coloca um
afeto de tipo Ersatz no lugar do afeto real que a timidez evita. Ao
colocar uma tela entre você e o amigo, além de manter o controle final sobre o
que aparece na tela, você também se esconde do verdadeiro encontro –- negando poder à liberdade do outro de desafiar você em sua natureza profunda, e de lhe chamar, aqui e agora, para tomar responsabilidade por si mesmo e por ele.
Enquanto
eu crescia, ensinaram-me que a timidez (ao contrário da modéstia) não é uma
virtude, mas um defeito, e que ela surge quando nos valorizamos demais -– o que nos proíbe de nos arriscar no encontro com os outros.
Removendo os riscos reais dos encontros interpessoais,
a experiência Facebook pode encorajar uma espécie de narcisismo, uma
postura de auto-respeito em algo que devia ser uma amizade de respeito pelos outros. Com efeito, não pode haver nada, aqui, além da auto-exibição, já que os
outros estão listados num site, não tendo nenhum valor por si mesmos.
A liberdade requer contexto
Na
sua maneira normal de proceder, o encontro Facebook é ainda um
encontro –- embora atenuado –- entre pessoas reais. Mas, cada vez mais, a tela
está tomando conta –- deixando de ser um meio de comunicação entre pessoas reais
que existem fora dela, e se tornando o lugar onde as pessoas finalmente
alcançam a realidade, o único lugar em que elas se relacionam com os outros de
modo coerente. Esse próximo estágio está evidente no fenômeno “avatar”, em que
as pessoas criam personagens virtuais, em mundos virtuais, como representantes
de si, de modo a viverem como controladores auto-complacentes por trás
da tela, expostos a nenhum perigo e desfrutando ainda de um tipo de afeição
substitutiva nas aventuras do seu ego cibernético.
O
jogo Second Life oferece um mundo virtual e lhe convida a
entrar nesse mundo na forma de um avatar construído a partir de uma
coleção de modelos. O jogo tem suas próprias lojas e as compras são feitas com
sua própria moeda. Ele dispõe de imóveis residenciais e comerciais para seus avatares.
Ao final de 2009, a companhia que criou o Second Life anunciou
que sua base de usuário havia registrado coletivamente mais de um bilhão de
horas no sistema e que as transações de negócios online somavam mais de um
bilhão de dólares.
O Second Life também
oferece oportunidades para ação “social”, em que as posições sociais podem ser
alcançadas por mérito –- ou, pelo menos, mérito virtual. Nesse meio, as pessoas
podem desfrutar de versões sem-custo das emoções sociais e podem se tornar
heróis da “compaixão”, sem mover um dedo no mundo real. Em um incidente
notável, em 2007, um homem tentou processar um avatar por roubo de
sua propriedade intelectual no Second Life. A propriedade mesma era um
“entretenimento adulto” –- um dos vários produtos do Second Life agora
disponíveis que permitem ao seu ego cibernético realizar suas fantasias mais
animalescas sem qualquer risco para si. Houve muitos casos de casais que nunca
haviam se encontrado pessoalmente e que conduziam relações adulteras
inteiramente no espaço cibernético; eles normalmente não mostravam nenhuma
culpa em relação a seus esposos e, na verdade, exibiam orgulhosamente suas
emoções como se tivessem alcançado algum tipo de progresso moral, e asseguravam
que foram apenas seus avatares, e não eles mesmos, que
acabaram indo pra cama.
A
maioria das pessoas veria esse estado de coisas como doentio. Uma coisa é
colocar uma tela entre você e o mundo; outra é viver no mundo dessa tela como a
esfera primária dos seus relacionamentos. Se uma pessoa investe sua vida
emocional em aventuras de um avatar, ela se retrai completamente dos
relacionamentos reais. Em vez de ser um meio para o aumento dos relacionamentos
que existem fora dela, a Internet pode se tornar o único
palco da vida social – mas uma vida irreal envolvendo pessoas irreais. Tal
pensamento faz reacender todas aquelas afirmações outrora em voga sobre a
alienação e o fetichismo da mercadoria, dos quais Marx e seus seguidores
acusaram a sociedade capitalista. O nerd que controla o avatar, essencialmente, “coloca
seu ser fora de si mesmo”, como eles diriam.
A
origem dessas críticas repousa numa idéia de Hegel, uma idéia de importância
duradoura que ressurge constantemente sob novas roupagens, especialmente nos
escritos dos psicólogos preocupados em mapear os contornos da felicidade
cotidiana. A idéia é esta: nós, seres humanos, realizamo-nos através de nossas
próprias ações livres, e pela consciência de que essas ações carregam o nosso
mérito individual. Mas nós não somos livres num estado de natureza, nem temos,
fora do mundo das relações humanas, o tipo de auto-consciência que nos permite
valorizar e desejar nossa auto-realização. A liberdade não pode ser reduzida a escolhas desimpedidas das quais mesmo um animal pode desfrutar; nem é a auto-consciência
simplesmente uma questão de imersão prazerosa nas experiências imediatas, como
o rato pressionado interminavelmente sobre um circuito aprazível.
A
liberdade implica um engajamento ativo com o mundo, em que o antagonismo é
encontrado e superado, os riscos são tomados e as satisfações são sopesadas:
trata-se, em suma, de um exercício da razão prática, em busca de objetivos cujos valores devem justificar os esforços necessários para alcançá-los. Da mesma
maneira, a autoconsciência, em sua forma plenamente realizada, implica não
apenas uma abertura à experiência presente, mas um senso da minha própria
existência enquanto indivíduo, dotado de planos e projetos que podem ser
realizados ou frustrados, e de uma concepção clara do que eu estou fazendo,
por que propósito e com qual expectativa de êxito.
Todas
essas idéias estão contidas no termo introduzido primeiramente pelo filosofo
Johann Gottlieb Fichte, para designar a meta interior de uma vida pessoal
livre: Selbstbestimmung, autodomínio ou certeza de si. A
afirmação crucial de Hegel é que a vida da liberdade e da certeza de si só pode
ser obtida através dos outros. Eu me torno plenamente quem realmente sou, apenas nos
contextos que me impelem a reconhecer que eu sou outro nos olhos dos outros. Eu
não conquisto a minha liberdade e, só em seguida, por assim dizer,
experimento-a no mundo das relações humanas. É só entrando nesse mundo, com
seus riscos, conflitos e responsabilidades, que eu venho a me conhecer como
livre, a desfrutar de minha própria perspectiva e individualidade, e a me
tornar uma pessoa realizada entre outras.
Em Fenomenologia do Espírito e Filosofia do Direito, Hegel narra
muitas parábolas prazerosas e provocativas sobre a maneira como o sujeito
conquista a liberdade e a realização por meio de sua Entäusserung
– sua objetivação – no mundo dos outros. O estatuto dessas
parábolas -– se elas são argumentos ou alegorias, análises conceituais ou
generalizações psicológicas -– foi sempre matéria de discussão. Mas alguns
psicólogos agora discutiriam a afirmação fundamental que está subjacente a elas: a liberdade e a realização do eu ocorrem apenas mediante o reconhecimento do
outro. Sem os outros, a minha liberdade é uma cifra vazia. E o reconhecimento do
outro envolve tomar plenamente a responsabilidade por minha própria existência
como indivíduo que sou.
Em
seu esforço para “colocar Hegel sob seus pés”, o jovem Marx traçou um contraste
importante entre a liberdade verdadeira que nos chega pelos relacionamentos com
outros indivíduos e a escravidão velada que ocorre quando as nossas investidas
para fora não se dirigem a sujeitos, mas a objetos. Em outras palavras, ele sugeriu que distinguíssemos a realização do eu, em relações
livres com os outros, da alienação do eu no sistema de
coisas.
Esse
é o núcleo da sua crítica à propriedade privada, e é uma crítica ligada tanto
às alegorias e narrativas quanto aos argumentos originais de Hegel. Nos seus
escritos posteriores, a crítica é transformada em teoria do “fetichismo”, de
acordo com a qual as pessoas perdem sua liberdade fazendo fetiches de
mercadorias. Um fetiche é algo que é animado por uma vida que lhe é transferida. O
consumidor numa sociedade capitalista, segundo Marx, transfere a sua vida às
mercadorias que o enfeitiçam, e então perde essa vida – tornando-se um escravo
de mercadorias precisamente por ver o mercado de bens, em vez de as interações
livres de pessoas, como o lugar onde seus desejos são frustrados e realizados.
É
preciso notar que essas críticas da propriedade e do mercado não merecem
endosso. Elas são desenvolvimentos extravagantes de uma filosofia hegeliana
que, bem compreendida, aprova as livres transações em um mercado tanto quanto
aprova as relações livres entre pessoas de modo geral – na verdade, ela vê uma
como aplicação da outra. Antes, a idéia crucial da qual nós podemos ainda
extrair alguma lição é a de Entäusserung, a realização do eu
nas relações responsáveis com os outros. Esse é o cerne da contribuição da
filosofia do período romântico para a compreensão da condição moderna, e é uma
idéia que tem aplicação direta a problemas que nós vemos emergindo em nosso
novo mundo de vida social conduzida pela Internet. No sentido em
que a liberdade é um valor, a liberdade é também um artefato que ganha forma na
interação mútua entre as pessoas. Essa interação mútua é o que nos eleva da
condição animal à condição de pessoa, permitindo-nos tomar responsabilidade por
nossas vidas e ações, avaliar nossos objetivos e nosso caráter, e a entender, também, a
natureza da realização pessoal, de modo a começar a almejá-la.
Como
enfatizaram os hegelianos, esse processo de elevação do eu sobre a condição
animal é decisivo para o desenvolvimento do sujeito humano como um agente
autoconsciente, capaz de se entreter e de agir razoavelmente, com uma
desenvolvida perspectiva de primeira pessoa e um senso de sua realidade como um
sujeito dentre outros. Esse é um processo que depende de conflitos e de
resoluções reais, num espaço público compartilhado, onde cada um de nós é
plenamente responsável pelo que é e faz. Qualquer coisa que interfira nesse
processo, minando o desenvolvimento de relações interpessoais, confiscando a
responsabilidade, impedindo ou desencorajando um indivíduo a tomar decisões
racionais de longo prazo, é um mal. Pode ser um mal inevitável; mas ainda é um
mal, e um mal que devemos nos esforçar para abolir, se pudermos.
A televisão e a tendência para a auto-alienação
A transferência da nossa vida social para a Internet é apenas uma das maneiras de prejudicarmos, ou retrocedermos desde, esse processo de auto-realização. Muito antes que a tentação surgisse (e preparasse o caminho) houve o engodo da televisão, que corresponde exatamente à crítica hegeliana e marxista do fetiche –- uma coisa inanimada na qual investimos nossa vida, e então a perdemos. É claro que mantemos o controle final sobre a televisão: nós podemos desligá-la. Mas as pessoas não o fazem, em geral; elas permanecem fixadas na tela em muitos daqueles momentos em que poderiam estar construindo relacionamentos por meio de conversas, atividades, conflitos e projetos. A televisão, para um vasto número de pessoas, destruiu as refeições em família, o cozinhar em casa, os passatempos, o trabalho em casa, o estudo, os jogos em família. Não se trata de uma questão de “emburrecimento” do pensamento e da imaginação pela televisão, ou de manipulação dos desejos e interesses das pessoas mediante imagens obscenas. Essas características são bastante familiares e são alvos constantes de críticas desesperadas. Nem estou apenas me referindo à sua qualidade de vício -– embora a pesquisa dos psicólogos Mihaly Csikszentmihalyi e Robert Kubeyofereça apresente evidencias convincentes de que a TV é tão viciante quanto os jogos de azar e as drogas.
A
preocupação é, antes, a natureza da televisão enquanto substituto dos
relacionamentos humanos. Ao assistir pessoas interagindo em sitcoms, o
viciado pode prescindir das suas próprias interações. Aquelas energias e
interesses que de outra maneira estariam focados nos outros –- em narrar,
discutir, em cantar ou jogar; em caminhar, falar, comer e agir –- são
consumidos na tela, numa vida indireta que não envolve o compromisso da bagagem
moral do espectador. Bagagem essa que, portanto, atrofia.
Observamos
esse fenômeno em todo lugar na vida moderna, mas em nenhum lugar mais
nitidamente do que entre os estudantes que chegam a nossas universidades. Estes
se dividem em dois tipos: aqueles que vieram de lares encharcados de televisão
e aqueles que cresceram se expressando. Os do primeiro tipo tendem a ser
reticentes, inarticulados, dados a agressão quando estão sob estresse,
incapazes de narrar uma história ou expressar um ponto de vista, e seriamente
embaraçados quando se trata de assumir responsabilidade por uma tarefa, uma
atividade ou um relacionamento. Os do segundo tipo são aqueles que levam idéias
adiante, que saem com seus companheiros, que irradiam o tipo de liberdade e
ousadia que torna a aprendizagem um prazer e o risco um desafio. Uma vez que
estes alunos tiveram uma educação atípica, eles estão sujeitos ao escárnio. Mas
eles têm uma vantagem sobre os seus contemporâneos viciados em televisão. Os
últimos podem ainda se libertar do seu vício; os esportes universitários, o
teatro, a música e assim por diante, podem ajudar a marginalizar a televisão da
vida dos campi. Mas, em quaisquer outros espaços públicos ou semi-públicos, a
televisão se tornou agora quase uma necessidade: ela pisca ao fundo,
tranqüilizando aqueles que consentiram que sua vida fosse guiada por ela.
Essas
críticas da televisão correspondem às criticas da natureza “fetichista” da
cultura de massas feitas por Max Horkheimer, Theodor Adorno e outros membros da
escola neo-marxista de Franfurt. Curiosamente, as idéias da Escola de Frankfurt
foram recentemente colocadas em uso ao criticar a outra maneira com que
alcançamos a estimulação imediata e sem custos: o iPod. Em seu livro de
2008, Sound Moves, Michael Bull baseia-se na “teoria da
cultura” de Horkheimer e Adorno para argumentar que, graças ao iPod, os espaços
públicos, de diversas maneiras, deixaram de ser espaços públicos e se tornaram
fragmentados e privatizados, cada pessoa retraindo-se em sua esfera inviolável
e perdendo a dependência e o interesse em relação a seus companheiros. Esse
processo não apenas aliena as pessoas uma das outras: permite que as pessoas
mantenham o controle sobre suas sensações, e assim se isolem do mundo de oportunidades, riscos, e escolhas.
Embora
haja razões para ser simpático ao argumento de Bull, assim como às críticas
originais da economia de consumo feitas por Adorno e Horkheimer, suas críticas
apontaram para o alvo errado: a saber, o sistema de produção capitalista e a
cultura industrial emergente que faz parte deste mesmo sistema. O objetivo de
Adorno e de seu empreendimento escarnecedor foi a substituição dos prazeres
livres-de-risco e viciosos pelos prazeres da compreensão, da liberdade e do
relacionamento. Eles podem estar certos em pensar que a cultura industrial tem
uma propensão para favorecer o primeiro tipo de prazer, este tipo de prazer que
é facilmente empacotado e vendido. Mas retire as maneiras saudáveis de se
desenvolver através dos relacionamentos, e os prazeres viciosos automaticamente
assumirão o controle, mesmo onde não haja cultura industrial para explorá-los –
como nós testemunhamos na Europa comunista. E, assim como o teatro, os meios de
comunicação da cultura de massas podem ser usados positivamente (por aqueles
com juízo crítico) para melhorar e aprofundar nossas simpatias reais. A
resposta correta para os males da televisão não é atacar aqueles que a fabricam
ou a estocam entre entulhos: é concentrar-se no tipo de educação que torna
possível fazer uma abordagem crítica da televisão, de modo a exigir o
entendimento real e a emoção real, ao invés de kitsch, Disney, ou pornô. E a
mesma coisa é verdade em relação ao iPod.
Esforçar-se
no sentido de uma abordagem crítica significa tornar claras as virtudes das
relações diretas em detrimento das substitutivas. Por que, como Villiers de
l’Isle-Adam disse, nós vamos enfrentar as dificuldades da vida se nós podemos
pedir aos nossos funcionários que o façam por nós? Por que criticamos aqueles
que comem hambúrguer no sofá enquanto a vida mostra o seu drama sem sentido na
tela? Torne essas questões claras, e então poderemos começar a educar as crianças
na arte de desligar a televisão.
O avatar pode,
portanto, ser apenas o último estágio de um processo de alienação em que as
pessoas aprendem a “colocar suas vidas fora de si mesmas”, a fazer de suas
vidas brinquedos sobre os quais mantêm completo controle, embora de uma maneira profundamente
ilusória. (Elas controlam fisicamente o que as controla
psicologicamente.) E é por isso que é tão tentador olhar de volta àquelas
velhas teorias hegelianas e marxistas. Pois elas tinham como premissa a idéia de que só nos tornamos livres “nos movendo para fora”, incorporando nossa
liberdade nas atividades em comum e nas relações mutuamente responsáveis. E os
hegelianos distinguiam a verdadeira maneira de “mover-se para fora” da falsa:
aquela em que obtemos nossa liberdade dando a ela uma forma real e objetiva,
como oposta àquela em que perdemos a liberdade porque a investimos em objetos que nos
alienam de nossa vida interior. Essas teorias mostram como a coisa que nós (ou,
pelo menos, os seguidores de Hegel) mais valorizamos na vida humana –-
auto-realização numa condição de liberdade –- está separada por uma fina linha
divisória da coisa que nos destrói –- auto-alienação numa condição de servidão.
Por
impressionantes que sejam, no entanto, as teorias marxistas-hegelianas estão
permeadas de metáfora e especulação; elas não estão ancoradas em pesquisas
empíricas ou em hipóteses explicativas; sua plausibilidade depende inteiramente
de pensamentos a priori sobre a natureza da liberdade e sobre a
distinção metafísica entre sujeito e objeto. Para que tenham alguma utilidade para
nós, precisamos traduzi-las numa linguagem mais terra-a-terra e prática –-
a que nos dirá como nossas crianças deveriam ser educadas, se quisermos
tirá-las da frente da tela.
Os riscos necessários da vida fora da tela
Devemos chegar a uma compreensão, então, do que está em jogo nas preocupações
atuais concernentes à Internet, avatares,
e à vida na tela. A primeira questão em jogo é o risco. Somos seres
racionais, dotados raciocínio prático e teórico. E o nosso raciocínio prático
se desenvolve por meio da confrontação com o risco e a incerteza. Em
grande medida, a vida na tela é livre de riscos: quando clicamos para entrar em
um novo domínio, nós não arriscamos nada imediato no sentido do perigo físico,
a nossa responsabilidade para com os outros e o risco de constrangimento
emocional são atenuados. Isso é nitidamente claro no caso da pornografia –- e
a natureza viciosa da pornografia é familiar a todos que tiveram de trabalhar
no aconselhamento chegaram ao estado de dependência perturbadora.
O viciado em pornografia obtém alguns dos benefícios da excitação sexual, sem
quaisquer dos seus custos normais; mas os custos são parte do que significa o
sexo, e quem os evita está destruindo em si mesmo a capacidade do contato
sexual.
Essa
libertação do risco é uma das características mais significantes do Second Life
e também está presente (até certo ponto) nos sites de rede social como o Facebook.
Pode-se entrar e sair, sem qualquer constrangimento, de relacionamentos realizados exclusivamente numa tela, permanecendo anônimo ou operando sob um
pseudônimo, escondendo-se por trás de um avatar ou de uma
fotografia falsa de si mesmo. Uma pessoa pode decidir “matar” sua identidade
cibernética a qualquer momento e ela não sofrerá nada como conseqüência. Por
que, então, incomodar-se de entrar no mundo dos encontros reais, quando esse
substitutivo fácil está disponível? E quando o substitutivo se torna um hábito,
as virtudes necessárias para o encontro real não são desenvolvidas.
Não
se deve deixar de mencionar que o hábito de reduzir o risco é muito comum em
nossa sociedade e, na verdade, estimulado pelo governo. Uma obsessão doentia
com a saúde e uma mania insegura de segurança tiraram muitos dos riscos que
gerações anteriores tomavam não apenas como algo adquirido, mas incorporavam no
processo de educação moral. Desde a inserção maciça e desnecessária de parques
para crianças e da obrigatoriedade de capacetes para skatistas até a
criminalização do vinho em mesas de família, os fanáticos seguros-e-saudáveis
nos cercaram em todos por todos os lados com uma teia de proibições, fomentando a crença
de que os riscos não dizem respeito ao indivíduo, mas a uma questão de
políticas públicas. As crianças não são, em geral, encorajadas a se arriscar fisicamente; e não é surpreendente que, por conseguinte, estejam relutantes em se arriscar também emocionalmente.
Mas
é improvável que essa seja a fonte da prevenção de riscos nos relacionamentos
humanos, ou uma indicação real da maneira certa e errada de proceder. Sem
dúvida, as crianças precisam de riscos físicos e de aventura se elas forem se
desenvolver como pessoas responsáveis, com sua completa quota de coragem,
prudência e sabedoria prática. Mas os riscos da alma são diferentes dos riscos
do corpo; você não aprende a dominá-los expondo-se a eles. Como sabemos, as
crianças que são expostas à predação sexual não aprendem a lidar com ela, mas,
ao contrário, tendem a adquirir o hábito de não lidar com ela:
fechadas completamente a um envolvimento emocional genuíno com sua sexualidade,
reduzem-na a algo puramente material, a negociam com raiva, aprendem a tratar a si mesmas
como objetos e perdem a capacidade de se arriscar no amor. Grande parte da
educação sexual moderna, que ensina que os únicos riscos do sexo são médicos,
expõe as crianças ao mesmo tipo de dano, incentivando-as a entrar no mundo das
relações sexuais sem a capacidade de dar ou receber o amor erótico, de modo que
aprendam a ver o sexo como algo que existe fora do domínio dos relacionamentos
duradouros –- uma fonte de prazer e não de amor.
Nas
relações humanas, a prevenção de riscos significa evitar a responsabilidade,
recusar ser julgado aos olhos do outro, recusar estar cara a cara com
outra pessoa, a doar-se a ele ou a ela em qualquer medida e então correr o
risco da rejeição. Ter responsabilidade não é algo que devemos evitar; é algo
que precisamos aprender. Sem ela jamais adquirimos, ou a capacidade de amar ou a
virtude da justiça, e sem ela as outras pessoas seriam meros instrumentos complexos, a
serem negociados como os animais são negociados, para nossa própria vantagem e
sem a abertura para a possibilidade de julgamento mútuo. A justiça é a
capacidade de ver o outro como alguém que tem uma reivindicação sobre você,
como um sujeito livre, assim como você é, e como alguém que exige sua
responsabilidade. Para adquirir essa virtude você deve se habituar aos contatos
face a face, nos quais você solicita o consentimento e a cooperação do outro ao invés de impor a ele sua vontade. O retraimento para trás da tela é uma maneira de
manter o controle sobre o encontro, minimizando a necessidade de reconhecer o
ponto de vista do outro. Isso implica colocar seu desejo fora de si, como
um recurso da realidade virtual, deixando de se arriscar como deveria se
se tratasse de um encontro verdadeiro com os outros.
Encontrar-se
com outra pessoa em sua liberdade é reconhecer sua soberania e seu direito: é
reconhecer que a situação que se desenrola já não está sob seu controle
exclusivo, mas que você foi apanhado por ela, que esta situação o tornou real e
responsável aos olhos do outro, sob as mesmas condições que fazem dele alguém
real e responsável aos seus olhos.
É óbvio que, nos encontros sexuais, este processo de “sair para fora” ao encontro do
outro deve ocorrer, se for um dom de amor genuíno, e se o ato sexual for algo
mais do que a fricção das partes do corpo. Aprender a “sair para fora” dessa
maneira é um processo moral complexo, que não pode ser simplificado sem colocar
o sexo fora do processo de vínculo psicológico. E parece claro –- embora de
maneira alguma seja fácil dar uma prova final sobre –- que esse vínculo está
em risco, cada vez mais, e que a causa é precisamente que o prazer sexual não vem acompanhado
da justiça ou do compromisso. Sem dúvida, é plausível sugerir que, quando
contamos com a tela como fórum de nosso desenvolvimento pessoal, adquirimos o hábito de nos relacionarmos uns com os outros sem a disciplina da responsabilidade, de
modo que o sexo, quando se chega a ele (como mesmo o viciado cibernético pode
eventualmente chegar), será considerado da mesma forma narcisista que as
excitações indiretas nas quais a relação sexual foi ensaiada. Ele ocorrerá
naquele “outro lugar” indefinível desde o qual a alma decola, mesmo no
momento de prazer.
Talvez possamos sobreviver num mundo de relações virtuais; mas este não é um mundo onde as crianças podem entrar facilmente, exceto como intrusos. Os avatares podem ser reproduzidos na tela: mas eles não vão preencher o mundo com crianças humanas reais. E os pais cibernéticos dessas crianças avatares, privados de tudo o que faz as pessoas crescerem como seres morais –- do risco, da vergonha, do sofrimento e do amor – serão reduzidos a meros pontos de vista, em um mundo onde eles realmente não existem.
Que texto parabéns , isso realmente é um sério problema só quem ama seu filho e passa por isso entende o quão mal é .Esses jovens se com portam como avatares privados de riscos eles realmente não existem .
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