quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

Escondendo-se atrás da tela - Roger Scruton

Verão de 2010

A nossa auto-imagem, e as relações humanas de modo geral, foram profundamente afetadas pela Internet e pela facilidade com que as imagens das outras pessoas podem ser chamadas à tela do computador para se tornarem objetos de atenção emocional. Como nós devemos conceituar essa mudança, e qual é o seu efeito na condição psicológica daqueles mais inclinados a construir seu mundo de interesses e relacionamentos através de uma tela? Essa mudança é tão prejudicial quanto querem nos fazer acreditar? Ela debilita a nossa capacidade de nos relacionar verdadeiramente com os outros, substituindo-a por uma mera afinidade imaginária? Ou é relativamente inofensiva, tão inocente quanto falar ao telefone com um amigo?

Primeiro, temos de fazer algumas distinções. Todos nós usamos o computador para enviar mensagens aos nossos amigos e às pessoas com quem nos relacionamos. Esse tipo de comunicação não é diferente em qualquer aspecto fundamental da prática antiga de escrever cartas, exceto por sua velocidade. Claro, não devemos considerar a velocidade um recurso trivial. A rapidez das comunicações modernas não acelera apenas o processo pelo qual os relacionamentos são formados e rompidos; ela muda inevitavelmente a maneira como essas relações são realizadas e compreendidas. Com a Internet e o telefone, a ausência é menos dolorosa, mas também perde algo da sua pungência; demais, os emails são raras vezes compostos tão cuidadosamente como as cartas, pois a própria lentidão com que a carta caminha ao seu destino nos impele a colocar mais dos nossos sentimentos nas palavras. Entretanto, o email é uma realidade, e não só uma realidade virtual: as mudanças que ele traz afetam comunicações reais travadas entre pessoas reais.

Mas a existência de redes sociais como o Facebook -- onde boa parte da comunicação também é real e entre pessoas reais -- não envolve qualquer tentativa de simplesmente substituir uma realidade virtual por uma actual. Ao contrário, elas parasitam os relacionamentos reais que engendram, alterando-os, em grande medida, ao incentivar as pessoas a se colocarem em exibição, e a tornarem-se voyeurs da exibição dos outros. Alguém pode alegar que a existência desses sites de redes sociais propicia um beneficio social e psicológico, e ajuda aqueles que evitam se apresentar diretamente ao mundo, a ganharem um espaço público e uma identidade. Tais sites também permitem que as pessoas mantenham contato com um vasto círculo de amigos e colegas, de modo a aumentar o leque de suas afeições, e a espalhar pelo mundo bons sentimentos e boa vontade.

Porém, algo de novo já está entrando no mundo das relações humanas com esses sites aparentemente inofensivos. Há uma nova facilidade com que as pessoas podem fazer contato umas com as outras por uma tela. Não há mais necessidade de se levantar da sua cadeira e fazer uma viagem à casa do seu amigo. Não há mais necessidade de reuniões semanais, ou do círculo de amigos no restaurante do centro da cidade ou no bar. Todas essas maneiras de fazer contato que demandam esforço podem ser dispensadas com um simples toque no teclado, que pode te levar para onde você queria estar, no site que define quem são os seus amigos. Mas como algo que é buscado e desenvolvido de maneira tão fácil e sem custos pode ser uma amizade real?

Amizade e controle

A amizade real mostra-se na ação e na afeição. O amigo verdadeiro é aquele que oferece resgate nas suas horas de necessidade, conforto na adversidade e que compartilha com você o sucesso que ele mesmo obteve. O que é difícil de realizar no computador –- afinal de contas, trata-se aqui, em primeiro lugar, de um espaço para informação, que é apenas um espaço para ação na medida em que a comunicação é uma forma de ação. Somente as palavras, e não a mão ou as coisas que ela carrega, podem, em tais condições, confortar aquele que sofre, afastar um golpe do inimigo ou fornecer qualquer um dos benefícios tangíveis da amizade em tempos de necessidade. Alguém poderia argumentar que, geralmente, as pessoas satisfazem a sua necessidade de companheirismo em relacionamentos realizados através de computadores, a não ser que se trate de desenvolver amizades do tipo que oferece ajuda e conforto nos testes reais da vida humana. As amizades realizadas primariamente no computador não podem ser facilmente rompidas, e se o são, não há qualquer garantia de que não haverá tensão. Na verdade, é precisamente o custo-livre dessas amizades, a sua característica tela-amigável, que atrai muitas pessoas –- tanto é assim que os meus alunos dizem que temem o vício, e freqüentemente proíbem-se de acessar sua conta Facebook por dias a fio, para continuar com suas vidas e relacionamento reais.

O que nós estamos testemunhando é uma mudança na atenção que faz mediação e dá origem à amizade. Nas condições outrora normais do contato humano, as pessoas se tornavam amigas estando em presença umas das outras, compreendendo os vários sinais sutis, verbais e corporais, pelos quais o outro atesta o seu caráter, emoções e intenções, construindo afeição e confiança em conjunto. A atenção estava fixada no outro –- no seu rosto, palavras e gestos. E a sua natureza enquanto pessoa encarnada inspirava sentimentos amigáveis que eram o foco da relação. As pessoas que constroem amizades dessa maneira estão fortemente conscientes de que se mostram ao outro como este se lhes mostra. O rosto do outro é um espelho em que elas vêem os seus próprios rostos. Precisamente porque a atenção está fixada no outro há uma oportunidade para o autoconhecimento e para a auto-descoberta, para essa expansão da liberdade na presença do outro que é uma das maiores alegrias da vida humana. O objeto de sentimentos humanos olha de volta a você, e responde amigavelmente à sua atividade livre, ampliando tanto a sua consciência como a dele mesmo. Tal como tradicionalmente concebida, a amizade era regida pela máxima “conhece-te a ti mesmo”.

Quando a atenção está fixada no outro como alguém que é intermediado pela tela, no entanto, há uma forte mudança de ênfase. Para começar, eu tenho o meu dedo no botão; a qualquer momento eu posso desligar a imagem, ou clicar para realizar um novo encontro. A outra pessoa é livre no seu próprio espaço, mas não é realmente livre no meu espaço, onde eu sou o árbitro último. Eu não estou me arriscando em uma amizade na mesma medida em que eu me arrisco quando eu encontro outra pessoa face a face. É claro, essa pessoa pode então prender minha atenção com suas mensagens, imagens e pedidos de que eu permaneça grudado na tela. Mas, em última análise,  trata-se de uma tela à qual eu estou grudado, e não do rosto que eu vejo nela. Toda interação com outrem se dá a certa distância, e ser afetado por ela se torna até certo ponto uma questão de minha própria escolha.

Nessa maneira cibernética de conduzir relacionamentos, eu gozo de um poder sobre o outro do qual ele mesmo não está realmente consciente –- uma vez que não está consciente do quanto eu desejo retê-lo no espaço diante de mim. E o poder que eu tenho sobre ele, ele o tem sobre mim: a mesma liberdade que me foi negada no seu espaço é-lhe negada no meu. Ele também, portanto, não vai se arriscar; ele aparece na tela apenas com a condição de manter o controle final sobre si mesmo. Isso é algo que eu sei sobre ele e que ele sabe que eu sei –- e vice-versa. Ali, cresce entre nós um encontro de risco reduzido, em que cada um está consciente de que o outro está fundamentalmente retido, soberano em seu castelo cibernético inexpugnável.

Mas essa não é a única maneira pela qual os relacionamentos cibernéticos são afetados pelo meio em que se formam. Por exemplo, enquanto a troca de mensagens está muito intensa no Facebook, boa parte dela é despersonalizado por natureza: o uso de mensagens privadas, para muitos, foi suplantado por postagens de mensagens num “mural” público de um amigo, o que significa que a rede inteira é agora participante na comunicação. E enquanto a postagem no mural ainda mantém a aparência de contato impessoal, provavelmente a forma mais comum de comunicação no Facebook é a “atualização de status”, uma mensagem que é difundida por uma pessoa a todas as outras (ou, dito de outro modo, a ninguém em particular).

Todas essas formas de comunicação aparecem em competição com tudo o mais que possa ser ativado pelo mouse. Você “clica” no seu amigo, assim como você pode clicar numa notícia ou num vídeo clipe. Ele é apenas um dentre os muitos produtos em exposição. Tornar-se amigo dele, e relacionar-se com ele de modo geral, pertence à categoria dos divertimentos e das distrações: uma mercadoria que pode ser escolhida ou não, dependendo das concorrentes. Isso contribui para uma demolição radical dos relacionamentos pessoais. Suas amizades já não são mais especiais para você ou definitivas para a sua vida moral: elas são diversões, objetos que não têm vida real em si mesmos, mas a vida que têm é emprestada do interesse que você tem por elas –- o que os marxistas chamariam “fetiches”.

Há um argumento forte a ser feito, aqui, segundo o qual  a experiência do Facebook, que atrai milhões de pessoas de todo o mundo, é um antídoto contra a timidez, uma maneira pela qual as pessoas, que de outra maneira estariam paralisadas pelo temor de se arriscar na vida social, são capazes de superar sua incapacidade e desfrutar da rede de relações afetivas da qual tanto depende a nossa felicidade. Mas há o argumento igualmente forte de que a experiência Facebook -- na medida em que está suplantando o domínio físico das relações humanas -- hipotastiza a timidez, conserva suas principais características e coloca um afeto de tipo Ersatz no lugar do afeto real que a timidez evita. Ao colocar uma tela entre você e o amigo, além de manter o controle final sobre o que aparece na tela, você também se esconde do verdadeiro encontro –- negando poder à liberdade do outro de desafiar você em sua natureza profunda, e de lhe chamar, aqui e agora, para tomar responsabilidade por si mesmo e por ele.

Enquanto eu crescia, ensinaram-me que a timidez (ao contrário da modéstia) não é uma virtude, mas um defeito, e que ela surge quando nos valorizamos demais -– o que nos proíbe de nos arriscar no encontro com os outros. Removendo os riscos reais dos encontros interpessoais, a experiência Facebook pode encorajar uma espécie de narcisismo, uma postura de auto-respeito em algo que devia ser uma amizade de respeito pelos outros. Com efeito, não pode haver nada, aqui, além da auto-exibição, já que os outros estão listados num site, não tendo nenhum valor por si mesmos.

A liberdade requer contexto

Na sua maneira normal de proceder, o encontro Facebook é ainda um encontro –- embora atenuado –- entre pessoas reais. Mas, cada vez mais, a tela está tomando conta –- deixando de ser um meio de comunicação entre pessoas reais que existem fora dela, e se tornando o lugar onde as pessoas finalmente alcançam a realidade, o único lugar em que elas se relacionam com os outros de modo coerente. Esse próximo estágio está evidente no fenômeno “avatar”, em que as pessoas criam personagens virtuais, em mundos virtuais, como representantes de si, de modo a viverem como controladores auto-complacentes por trás da tela, expostos a nenhum perigo e desfrutando ainda de um tipo de afeição substitutiva nas aventuras do seu ego cibernético.

O jogo Second Life oferece um mundo virtual e lhe convida a entrar nesse mundo na forma de um avatar construído a partir de uma coleção de modelos. O jogo tem suas próprias lojas e as compras são feitas com sua própria moeda. Ele dispõe de imóveis residenciais e comerciais para seus avatares. Ao final de 2009, a companhia que criou o Second Life anunciou que sua base de usuário havia registrado coletivamente mais de um bilhão de horas no sistema e que as transações de negócios online somavam mais de um bilhão de dólares.

Second Life também oferece oportunidades para ação “social”, em que as posições sociais podem ser alcançadas por mérito –- ou, pelo menos, mérito virtual. Nesse meio, as pessoas podem desfrutar de versões sem-custo das emoções sociais e podem se tornar heróis da “compaixão”, sem mover um dedo no mundo real. Em um incidente notável, em 2007, um homem tentou processar um avatar por roubo de sua propriedade intelectual no Second Life. A propriedade mesma era um “entretenimento adulto” –- um dos vários produtos do Second Life agora disponíveis que permitem ao seu ego cibernético realizar suas fantasias mais animalescas sem qualquer risco para si. Houve muitos casos de casais que nunca haviam se encontrado pessoalmente e que conduziam relações adulteras inteiramente no espaço cibernético; eles normalmente não mostravam nenhuma culpa em relação a seus esposos e, na verdade, exibiam orgulhosamente suas emoções como se tivessem alcançado algum tipo de progresso moral, e asseguravam que foram apenas seus avatares, e não eles mesmos, que acabaram indo pra cama.

A maioria das pessoas veria esse estado de coisas como doentio. Uma coisa é colocar uma tela entre você e o mundo; outra é viver no mundo dessa tela como a esfera primária dos seus relacionamentos. Se uma pessoa investe sua vida emocional em aventuras de um avatar, ela se retrai completamente dos relacionamentos reais. Em vez de ser um meio para o aumento dos relacionamentos que existem fora dela, a Internet pode se tornar o único palco da vida social – mas uma vida irreal envolvendo pessoas irreais. Tal pensamento faz reacender todas aquelas afirmações outrora em voga sobre a alienação e o fetichismo da mercadoria, dos quais Marx e seus seguidores acusaram a sociedade capitalista. O nerd que controla o avatar, essencialmente, “coloca seu ser fora de si mesmo”, como eles diriam.

A origem dessas críticas repousa numa idéia de Hegel, uma idéia de importância duradoura que ressurge constantemente sob novas roupagens, especialmente nos escritos dos psicólogos preocupados em mapear os contornos da felicidade cotidiana. A idéia é esta: nós, seres humanos, realizamo-nos através de nossas próprias ações livres, e pela consciência de que essas ações carregam o nosso mérito individual. Mas nós não somos livres num estado de natureza, nem temos, fora do mundo das relações humanas, o tipo de auto-consciência que nos permite valorizar e desejar nossa auto-realização. A liberdade não pode ser reduzida a escolhas desimpedidas das quais mesmo um animal pode desfrutar; nem é a auto-consciência simplesmente uma questão de imersão prazerosa nas experiências imediatas, como o rato pressionado interminavelmente sobre um circuito aprazível.

A liberdade implica um engajamento ativo com o mundo, em que o antagonismo é encontrado e superado, os riscos são tomados e as satisfações são sopesadas: trata-se, em suma, de um exercício da razão prática, em busca de objetivos cujos valores devem justificar os esforços necessários para alcançá-los. Da mesma maneira, a autoconsciência, em sua forma plenamente realizada, implica não apenas uma abertura à experiência presente, mas um senso da minha própria existência enquanto indivíduo, dotado de planos e projetos que podem ser realizados ou frustrados, e de uma concepção clara do que eu estou fazendo, por que propósito e com qual expectativa de êxito.

Todas essas idéias estão contidas no termo introduzido primeiramente pelo filosofo Johann Gottlieb Fichte, para designar a meta interior de uma vida pessoal livre: Selbstbestimmung, autodomínio ou certeza de si. A afirmação crucial de Hegel é que a vida da liberdade e da certeza de si só pode ser obtida através dos outros. Eu me torno plenamente quem realmente sou, apenas nos contextos que me impelem a reconhecer que eu sou outro nos olhos dos outros. Eu não conquisto a minha liberdade e, só em seguida, por assim dizer, experimento-a no mundo das relações humanas. É só entrando nesse mundo, com seus riscos, conflitos e responsabilidades, que eu venho a me conhecer como livre, a desfrutar de minha própria perspectiva e individualidade, e a me tornar uma pessoa realizada entre outras.

Em Fenomenologia do Espírito Filosofia do DireitoHegel narra muitas parábolas prazerosas e provocativas sobre a maneira como o sujeito conquista a liberdade e a realização por meio de sua Entäusserung – sua objetivação – no mundo dos outros. O estatuto dessas parábolas -– se elas são argumentos ou alegorias, análises conceituais ou generalizações psicológicas -– foi sempre matéria de discussão. Mas alguns psicólogos  agora discutiriam a afirmação fundamental que está subjacente a elas: a liberdade e a realização do eu ocorrem apenas mediante o reconhecimento do outro. Sem os outros, a minha liberdade é uma cifra vazia. E o reconhecimento do outro envolve tomar plenamente a responsabilidade por minha própria existência como indivíduo que sou.

Em seu esforço para “colocar Hegel sob seus pés”, o jovem Marx traçou um contraste importante entre a liberdade verdadeira que nos chega pelos relacionamentos com outros indivíduos e a escravidão velada que ocorre quando as nossas investidas para fora não se dirigem a sujeitos, mas a objetos. Em outras palavras, ele sugeriu que distinguíssemos a realização do eu, em relações livres com os outros, da alienação do eu no sistema de coisas.

Esse é o núcleo da sua crítica à propriedade privada, e é uma crítica ligada tanto às alegorias e narrativas quanto aos argumentos originais de Hegel. Nos seus escritos posteriores, a crítica é transformada em teoria do “fetichismo”, de acordo com a qual as pessoas perdem sua liberdade fazendo fetiches de mercadorias. Um fetiche é algo que é animado por uma vida que lhe é transferida. O consumidor numa sociedade capitalista, segundo Marx, transfere a sua vida às mercadorias que o enfeitiçam, e então perde essa vida – tornando-se um escravo de mercadorias precisamente por ver o mercado de bens, em vez de as interações livres de pessoas, como o lugar onde seus desejos são frustrados e realizados.

É preciso notar que essas críticas da propriedade e do mercado não merecem endosso. Elas são desenvolvimentos extravagantes de uma filosofia hegeliana que, bem compreendida, aprova as livres transações em um mercado tanto quanto aprova as relações livres entre pessoas de modo geral – na verdade, ela vê uma como aplicação da outra. Antes, a idéia crucial da qual nós podemos ainda extrair alguma lição é a de Entäusserung, a realização do eu nas relações responsáveis com os outros. Esse é o cerne da contribuição da filosofia do período romântico para a compreensão da condição moderna, e é uma idéia que tem aplicação direta a problemas que nós vemos emergindo em nosso novo mundo de vida social conduzida pela Internet. No sentido em que a liberdade é um valor, a liberdade é também um artefato que ganha forma na interação mútua entre as pessoas. Essa interação mútua é o que nos eleva da condição animal à condição de pessoa, permitindo-nos tomar responsabilidade por nossas vidas e ações, avaliar nossos objetivos e  nosso caráter, e a entender, também, a natureza da realização pessoal, de modo a começar a almejá-la.

Como enfatizaram os hegelianos, esse processo de elevação do eu sobre a condição animal é decisivo para o desenvolvimento do sujeito humano como um agente autoconsciente, capaz de se entreter e de agir razoavelmente, com uma desenvolvida perspectiva de primeira pessoa e um senso de sua realidade como um sujeito dentre outros. Esse é um processo que depende de conflitos e de resoluções reais, num espaço público compartilhado, onde cada um de nós é plenamente responsável pelo que é e faz. Qualquer coisa que interfira nesse processo, minando o desenvolvimento de relações interpessoais, confiscando a responsabilidade, impedindo ou desencorajando um indivíduo a tomar decisões racionais de longo prazo, é um mal. Pode ser um mal inevitável; mas ainda é um mal, e um mal que devemos nos esforçar para abolir, se pudermos.

A televisão e a tendência para a auto-alienação

A transferência da nossa vida social para a Internet é apenas uma das maneiras de prejudicarmos, ou retrocedermos desde, esse processo de auto-realização. Muito antes que a tentação surgisse (e preparasse o caminho) houve o engodo da televisão, que corresponde exatamente à crítica hegeliana e marxista do fetiche –- uma coisa inanimada na qual investimos nossa vida, e então a perdemos. É claro que mantemos o controle final sobre a televisão: nós podemos desligá-la. Mas as pessoas não o fazem, em geral; elas permanecem fixadas na tela em muitos daqueles momentos em que poderiam estar construindo relacionamentos por meio de conversas, atividades, conflitos e projetos. A televisão, para um vasto número de pessoas, destruiu as refeições em família, o cozinhar em casa, os passatempos, o trabalho em casa, o estudo, os jogos em família. Não se trata de uma questão de “emburrecimento” do pensamento e da imaginação pela televisão, ou de manipulação dos desejos e interesses das pessoas mediante imagens obscenas. Essas características são bastante familiares e são alvos constantes de críticas desesperadas. Nem estou apenas me referindo à sua qualidade de vício -– embora a pesquisa dos psicólogos Mihaly Csikszentmihalyi e Robert Kubeyofereça apresente evidencias convincentes de que a TV é tão viciante quanto os jogos de azar e as drogas.

A preocupação é, antes, a natureza da televisão enquanto substituto dos relacionamentos humanos. Ao assistir pessoas interagindo em sitcoms, o viciado pode prescindir das suas próprias interações. Aquelas energias e interesses que de outra maneira estariam focados nos outros –- em narrar, discutir, em cantar ou jogar; em caminhar, falar, comer e agir –- são consumidos na tela, numa vida indireta que não envolve o compromisso da bagagem moral do espectador. Bagagem essa que, portanto, atrofia.

Observamos esse fenômeno em todo lugar na vida moderna, mas em nenhum lugar mais nitidamente do que entre os estudantes que chegam a nossas universidades. Estes se dividem em dois tipos: aqueles que vieram de lares encharcados de televisão e aqueles que cresceram se expressando. Os do primeiro tipo tendem a ser reticentes, inarticulados, dados a agressão quando estão sob estresse, incapazes de narrar uma história ou expressar um ponto de vista, e seriamente embaraçados quando se trata de assumir responsabilidade por uma tarefa, uma atividade ou um relacionamento. Os do segundo tipo são aqueles que levam idéias adiante, que saem com seus companheiros, que irradiam o tipo de liberdade e ousadia que torna a aprendizagem um prazer e o risco um desafio. Uma vez que estes alunos tiveram uma educação atípica, eles estão sujeitos ao escárnio. Mas eles têm uma vantagem sobre os seus contemporâneos viciados em televisão. Os últimos podem ainda se libertar do seu vício; os esportes universitários, o teatro, a música e assim por diante, podem ajudar a marginalizar a televisão da vida dos campi. Mas, em quaisquer outros espaços públicos ou semi-públicos, a televisão se tornou agora quase uma necessidade: ela pisca ao fundo, tranqüilizando aqueles que consentiram que sua vida fosse guiada por ela.

Essas críticas da televisão correspondem às criticas da natureza “fetichista” da cultura de massas feitas por Max Horkheimer, Theodor Adorno e outros membros da escola neo-marxista de Franfurt. Curiosamente, as idéias da Escola de Frankfurt foram recentemente colocadas em uso ao criticar a outra maneira com que alcançamos a estimulação imediata e sem custos: o iPod. Em seu livro de 2008, Sound MovesMichael Bull baseia-se na “teoria da cultura” de Horkheimer e Adorno para argumentar que, graças ao iPod, os espaços públicos, de diversas maneiras, deixaram de ser espaços públicos e se tornaram fragmentados e privatizados, cada pessoa retraindo-se em sua esfera inviolável e perdendo a dependência e o interesse em relação a seus companheiros. Esse processo não apenas aliena as pessoas uma das outras: permite que as pessoas mantenham o controle sobre suas sensações, e assim se isolem do mundo de oportunidades, riscos, e escolhas.

Embora haja razões para ser simpático ao argumento de Bull, assim como às críticas originais da economia de consumo feitas por Adorno e Horkheimer, suas críticas apontaram para o alvo errado: a saber, o sistema de produção capitalista e a cultura industrial emergente que faz parte deste mesmo sistema. O objetivo de Adorno e de seu empreendimento escarnecedor foi a substituição dos prazeres livres-de-risco e viciosos pelos prazeres da compreensão, da liberdade e do relacionamento. Eles podem estar certos em pensar que a cultura industrial tem uma propensão para favorecer o primeiro tipo de prazer, este tipo de prazer que é facilmente empacotado e vendido. Mas retire as maneiras saudáveis de se desenvolver através dos relacionamentos, e os prazeres viciosos automaticamente assumirão o controle, mesmo onde não haja cultura industrial para explorá-los – como nós testemunhamos na Europa comunista. E, assim como o teatro, os meios de comunicação da cultura de massas podem ser usados positivamente (por aqueles com juízo crítico) para melhorar e aprofundar nossas simpatias reais. A resposta correta para os males da televisão não é atacar aqueles que a fabricam ou a estocam entre entulhos: é concentrar-se no tipo de educação que torna possível fazer uma abordagem crítica da televisão, de modo a exigir o entendimento real e a emoção real, ao invés de kitsch, Disney, ou pornô. E a mesma coisa é verdade em relação ao iPod.

Esforçar-se no sentido de uma abordagem crítica significa tornar claras as virtudes das relações diretas em detrimento das substitutivas. Por que, como Villiers de l’Isle-Adam disse, nós vamos enfrentar as dificuldades da vida se nós podemos pedir aos nossos funcionários que o façam por nós? Por que criticamos aqueles que comem hambúrguer no sofá enquanto a vida mostra o seu drama sem sentido na tela? Torne essas questões claras, e então poderemos começar a educar as crianças na arte de desligar a televisão.

avatar pode, portanto, ser apenas o último estágio de um processo de alienação em que as pessoas aprendem a “colocar suas vidas fora de si mesmas”, a fazer de suas vidas brinquedos sobre os quais mantêm completo controle, embora de uma maneira profundamente ilusória. (Elas controlam fisicamente o que as controla psicologicamente.) E é por isso que é tão tentador olhar de volta àquelas velhas teorias hegelianas e marxistas. Pois elas tinham como premissa a idéia de que só nos tornamos livres “nos movendo para fora”, incorporando nossa liberdade nas atividades em comum e nas relações mutuamente responsáveis. E os hegelianos distinguiam a verdadeira maneira de “mover-se para fora” da falsa: aquela em que obtemos nossa liberdade dando a ela uma forma real e objetiva, como oposta àquela em que perdemos a liberdade porque a investimos em objetos que nos alienam de nossa vida interior. Essas teorias mostram como a coisa que nós (ou, pelo menos, os seguidores de Hegel) mais valorizamos na vida humana –- auto-realização numa condição de liberdade –- está separada por uma fina linha divisória da coisa que nos destrói –- auto-alienação numa condição de servidão.

Por impressionantes que sejam, no entanto, as teorias marxistas-hegelianas estão permeadas de metáfora e especulação; elas não estão ancoradas em pesquisas empíricas ou em hipóteses explicativas; sua plausibilidade depende inteiramente de pensamentos a priori sobre a natureza da liberdade e sobre a distinção metafísica entre sujeito e objeto. Para que tenham alguma utilidade para nós, precisamos traduzi-las numa linguagem mais terra-a-terra e prática –- a que nos dirá como nossas crianças deveriam ser educadas, se quisermos tirá-las da frente da tela.

Os riscos necessários da vida fora da tela

Devemos chegar a uma compreensão, então, do que está em jogo nas preocupações atuais concernentes à Internetavatares, e à vida na tela. A primeira questão em jogo é o risco. Somos seres racionais, dotados raciocínio prático e teórico. E o nosso raciocínio prático se desenvolve por meio da confrontação com o risco e a incerteza. Em grande medida, a vida na tela é livre de riscos: quando clicamos para entrar em um novo domínio, nós não arriscamos nada imediato no sentido do perigo físico, a nossa responsabilidade para com os outros e o risco de constrangimento emocional são atenuados. Isso é nitidamente claro no caso da pornografia –- e a natureza viciosa da pornografia é familiar a todos que tiveram de trabalhar no aconselhamento chegaram ao estado de dependência perturbadora. O viciado em pornografia obtém alguns dos benefícios da excitação sexual, sem quaisquer dos seus custos normais; mas os custos são parte do que significa o sexo, e quem os evita está destruindo em si mesmo a capacidade do contato sexual.

Essa libertação do risco é uma das características mais significantes do Second Life e também está presente (até certo ponto) nos sites de rede social como o Facebook. Pode-se entrar e sair, sem qualquer constrangimento, de relacionamentos realizados exclusivamente numa tela, permanecendo anônimo ou operando sob um pseudônimo, escondendo-se por trás de um avatar ou de uma fotografia falsa de si mesmo. Uma pessoa pode decidir “matar” sua identidade cibernética a qualquer momento e ela não sofrerá nada como conseqüência. Por que, então, incomodar-se de entrar no mundo dos encontros reais, quando esse substitutivo fácil está disponível? E quando o substitutivo se torna um hábito, as virtudes necessárias para o encontro real não são desenvolvidas.

Não se deve deixar de mencionar que o hábito de reduzir o risco é muito comum em nossa sociedade e, na verdade, estimulado pelo governo. Uma obsessão doentia com a saúde e uma mania insegura de segurança tiraram muitos dos riscos que gerações anteriores tomavam não apenas como algo adquirido, mas incorporavam no processo de educação moral. Desde a inserção maciça e desnecessária de parques para crianças e da obrigatoriedade de capacetes para skatistas até a criminalização do vinho em mesas de família, os fanáticos seguros-e-saudáveis nos cercaram em todos por todos os lados com uma teia de proibições, fomentando a crença de que os riscos não dizem respeito ao indivíduo, mas a uma questão de políticas públicas. As crianças não são, em geral, encorajadas a se arriscar fisicamente; e não é surpreendente que, por conseguinte, estejam relutantes em se arriscar também emocionalmente.

Mas é improvável que essa seja a fonte da prevenção de riscos nos relacionamentos humanos, ou uma indicação real da maneira certa e errada de proceder. Sem dúvida, as crianças precisam de riscos físicos e de aventura se elas forem se desenvolver como pessoas responsáveis, com sua completa quota de coragem, prudência e sabedoria prática. Mas os riscos da alma são diferentes dos riscos do corpo; você não aprende a dominá-los expondo-se a eles. Como sabemos, as crianças que são expostas à predação sexual não aprendem a lidar com ela, mas, ao contrário, tendem a adquirir o hábito de não lidar com ela: fechadas completamente a um envolvimento emocional genuíno com sua sexualidade, reduzem-na a algo puramente material, a negociam com raiva, aprendem a tratar a si mesmas como objetos e perdem a capacidade de se arriscar no amor. Grande parte da educação sexual moderna, que ensina que os únicos riscos do sexo são médicos, expõe as crianças ao mesmo tipo de dano, incentivando-as a entrar no mundo das relações sexuais sem a capacidade de dar ou receber o amor erótico, de modo que aprendam a ver o sexo como algo que existe fora do domínio dos relacionamentos duradouros –- uma fonte de prazer e não de amor.

Nas relações humanas, a prevenção de riscos significa evitar a responsabilidade, recusar ser julgado aos olhos do outro, recusar estar cara a cara com outra pessoa, a doar-se a ele ou a ela em qualquer medida e então correr o risco da rejeição. Ter responsabilidade não é algo que devemos evitar; é algo que precisamos aprender. Sem ela jamais adquirimos, ou a capacidade de amar ou a virtude da justiça, e sem ela as outras pessoas seriam meros instrumentos complexos, a serem negociados como os animais são negociados, para nossa própria vantagem e sem a abertura para a possibilidade de julgamento mútuo. A justiça é a capacidade de ver o outro como alguém que tem uma reivindicação sobre você, como um sujeito livre, assim como você é, e como alguém que exige sua responsabilidade. Para adquirir essa virtude você deve se habituar aos contatos face a face, nos quais você solicita o consentimento e a cooperação do outro ao invés de impor a ele sua vontade. O retraimento para trás da tela é uma maneira de manter o controle sobre o encontro, minimizando a necessidade de reconhecer o ponto de vista do outro. Isso implica colocar seu desejo fora de si, como um recurso da realidade virtual, deixando de se arriscar como deveria se se tratasse de um encontro verdadeiro com os outros.

Encontrar-se com outra pessoa em sua liberdade é reconhecer sua soberania e seu direito: é reconhecer que a situação que se desenrola já não está sob seu controle exclusivo, mas que você foi apanhado por ela, que esta situação o tornou real e responsável aos olhos do outro, sob as mesmas condições que fazem dele alguém real e responsável aos seus olhos.

É óbvio que, nos encontros sexuais, este processo de “sair para fora” ao encontro do outro deve ocorrer, se for um dom de amor genuíno, e se o ato sexual for algo mais do que a fricção das partes do corpo. Aprender a “sair para fora” dessa maneira é um processo moral complexo, que não pode ser simplificado sem colocar o sexo fora do processo de vínculo psicológico. E parece claro –- embora de maneira alguma seja fácil dar uma prova final sobre  –- que esse vínculo está em risco, cada vez mais, e que a causa é precisamente que o prazer sexual não vem acompanhado da justiça ou do compromisso. Sem dúvida, é plausível sugerir que, quando contamos com a tela como fórum de nosso desenvolvimento pessoal, adquirimos o hábito de nos relacionarmos uns  com os outros sem a disciplina da responsabilidade, de modo que o sexo, quando se chega a ele (como mesmo o viciado cibernético pode eventualmente chegar), será considerado da mesma forma narcisista que as excitações indiretas nas quais a relação sexual foi ensaiada. Ele ocorrerá naquele “outro lugar” indefinível desde o qual a alma decola, mesmo no momento de prazer.

Talvez possamos sobreviver num mundo de relações virtuais; mas este não é um mundo onde as crianças podem entrar facilmente, exceto como intrusos. Os avatares podem ser reproduzidos na tela: mas eles não vão preencher o mundo com crianças humanas reais. E os pais cibernéticos dessas crianças avatares, privados de tudo o que faz as pessoas crescerem como seres morais –- do risco, da vergonha, do sofrimento e do amor – serão reduzidos a meros pontos de vista, em um mundo onde eles realmente não existem.

Um comentário:

  1. Que texto parabéns , isso realmente é um sério problema só quem ama seu filho e passa por isso entende o quão mal é .Esses jovens se com portam como avatares privados de riscos eles realmente não existem .

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