sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

O alto custo de se ignorar beleza - Roger Scruton

19/12/2012 The American - A revista online do Enterprise American Institute
[http://www.american.com/archive/2009/december-2009/the-high-cost-of-ignoring-beauty]
A arquitetura ilustra claramente os custos sociais, ambientais, econômicos, e estéticos de se  ignorar a beleza. Nós estamos sendo tirados de nós mesmos por gestos ruidosos de pessoas que querem prender nossa atenção sem oferecer, porém, nada em troca.
                           

Na Grã-Bretanha, o Estado, na forma de governo local ou central, vai lhe dizer se você pode ou não construir no seu próprio terreno. E, se permitir que você construa, ele estipulará não só as finalidades para as quais você deve utilizar o edifício, mas também como deve ser sua aparência, e quais materiais você deve usar para construí-lo. Os americanos estão acostumados a regulamentos de construção que estabelecem normas utilitárias: isolamentos, alarmes de incêndio, cercas elétricas, tamanho e localização dos banheiros, e assim por diante. Mas eles não estão acostumados a serem informados sobre quais princípios estéticos seguir, ou sobre o que o bairro necessita em termos de detalhes materiais e arquitetônicos. Eu suspeito que muitos americanos considerariam tais estipulações uma violação ao direito de propriedade, e mais uma prova da expansão ilegítima do Estado.

Essa atitude americana tem algo de saudável neste tocante, mas tende a seguir dois pressupostos bastante falsos sobre a beleza e a estética. O primeiro pressuposto é de que a beleza é uma questão inteiramente subjetiva, acerca da qual não pode haver qualquer argumentação razoável e a respeito da qual é inútil buscar um consenso. O segundo pressuposto, conveniente àqueles que adotaram o primeiro, é de que a beleza não importa, que ela não tem realidade econômica, que não se pode permitir colocar qualquer restrição independente no funcionamento do mercado.

O primeiro pressuposto, de que a beleza é subjetiva, deve muito do seu apelo ao fato de ser funcional numa cultura democrática. Ao fazer essa afirmação, você evita ofender aqueles cujas preferências diferem das suas. O sujeito gosta de gnomos de jardim, de aparatos iluminados de natal, do Big Crosby cantando "White Christmas", e de mil outras coisas que causam arrepios na espinha de uma pessoa educada. Mas esse é o gosto dele, e ele tem o seu direito. Deixe-o se divertir com isso e ele deixará você escutando os quartetos de Beethoven, coletando antiguidades, e projetando sua casa no estilo de Palladio. Mas às vezes o pressuposto deixa de ser funcional. A cada ano, a exposição de natal aumenta de tamanho, fica mais brilhante e inoportuna, e dura mais tempo. Ao final, a casa dele tem durante todo o ano árvores de natal, com o Papai Noel saindo da chaminé e renas brilhando vivamente no gramado. Para ser honesto, o panorama é insuportável, e estraga inteiramente a vista da sua janela. Você revida tocando Wagner tarde da noite, apenas para receber rajadas de Bing Crosby na madrugada. Eis a cultura democrática em funcionamento – em seu caminho rumo à destruição mútua.

Esse tipo de coisa tem sido sentido fortemente na Europa, e é um dos motivos da reação contrária ao McDonalds. Embora todos tenham o direito de anunciar seus produtos, o anúncio não deve estragar o lugar onde se faz brilhar. E os anúncios americanos parecem invariavelmente projetados para fazer justamente isso. Talvez eles não tenham esse efeito na América: afinal, é difícil imaginar como a rua principal americana pode ser estragada por um sinal luminoso ou por qualquer coisa. Mas as ruas principais das cidades europeias são o resultado de decisões estéticas meticulosas tomadas ao longo dos séculos. Será que realmente queremos arcos amarelos duplos competindo com os arcos de São Marcos? 

Essa questão pode nos levar a revisar o pressuposto de que a beleza é subjetiva. Juízos estéticos podem lhe parecer subjetivos quando você está andando no deserto estético de Waco ou Las Vegas. Nas antigas cidades da Europa, no entanto, você descobre o que acontece quando as pessoas são guiadas por uma tradição comum que não só torna o juízo estético central, mas também estabelece normas que orientam o que todo mundo faz. E em Veneza ou Praga, em Bath, Oxford, ou Lisboa, você chega a ver que existe toda a diferença do mundo entre o juízo estético tratado como um gosto pessoal, e o juízo estético tratado de maneira oposta, como a expressão de uma comunidade. Talvez vejamos a beleza como subjetiva apenas porque temos dado ao juízo estético o lugar errado em nossas vidas -- vendo-o como um modo de autoafirmação, e não como uma forma de abnegação.

Há um paralelo, aqui, com os costumes. Mesmo que os americanos se sintam no direito de construir como quiserem, eles não se sentem no direito de se comportar como quiserem em relação aos seus vizinhos. Ao contrário, na cultura americana os costumes são considerados de suma importância, e reconhecidos como a garantia última da coexistência pacífica. Os americanos cumprimentam os seus vizinhos, falam educadamente, estão sempre sorrindo. Se alguém esbarra-lhes na rua, eles pedem desculpa; eles não podem se despedir de ninguém, nem mesmo de um estranho, sem desejar-lhe um dia maravilhoso. E a cortesia é o principio que regula todas as transações comerciais. Em suma, os costumes americanos existem a fim de que as pessoas se adaptem, não para que se destaquem. São maneiras pelas quais a individualidade é suprimida, e uma língua franca de gestos harmônicos é adotada em seu lugar. E isso tem uma função, a saber: proteger o privado do publico, garantir que cada pessoa segura em seu espaço, e que o espaço público seja minimamente intimidatório.

Quando se trata de beleza, a nossa visão de seu estado é radicalmente afetada pelo fato de a vermos como uma forma de autoafirmação, ou como uma forma de abnegação. Se a vemos desta segunda maneira, então a hipótese de que ela é meramente subjetiva começa a se esvair. Pelo contrario, a beleza começa a tomar outro caráter, como um dos instrumentos da nossa estratégia para estabelecer um consenso, um dos valores pelos quais nós construímos e pertencemos a um mundo compartilhado e mutuamente consolador. Em suma, isso faz parte da construção de um lar.

Podemos ver isso claramente, se observarmos os rituais e os costumes da vida familiar. Considere o que acontece quando você arruma a mesa para uma refeição. Isso não é somente um evento utilitário. Se você tratá-lo como tal, o ritual se desintegrará, e os membros da família vão acabar pegando porções individuais de comida por sua própria conta. A mesa é posta de acordo com regras precisas de simetria, escolhendo os talheres certos, os pratos certos, as jarras e os copos certos. Tudo é meticulosamente dirigido por normas estéticas, e essas normas transmitem algo do significado da vida familiar. O molde de um prato willow-pattern, por exemplo, tem sido consolidado ao longo dos séculos, e expressa tranquilidade, gentileza e coisas que permanecem sempre as mesmas. Muitos dos objetos ordinários de mesa foram, por assim dizer, polidos pela afeição doméstica. Seus contornos têm sido aperfeiçoados, e eles expressam tons moderados, despretensiosos de pertença. Servir a comida é também realizar um rito, e você testemunha, na refeição familiar, a continuidade entre os costumes e os valores estéticos. Você testemunha também outra continuidade, entre os valores estéticos e a emoção que os romanos conheciam como piedade – o reconhecimento de que o mundo está em outras mãos que não as humanas. Deste modo, os deuses estão presentes nas horas de refeição, e os cristãos precedem sua alimentação com uma graça, convidando Deus para sentar-se entre eles antes de sentarem-se eles mesmos.

Esse exemplo nos diz muito sobre o julgamento estético e a busca da beleza. Em particular, mostra a centralidade da beleza na construção de um lar e, portanto, na criação de um ambiente compartilhado. Quando o intuito de partilhar surge, nós olhamos para diretrizes e convenções que nós todos podemos aceitar. Nós deixamos para trás as nossas inclinações pessoais e preferências subjetivas, a fim de chegar a um consenso que propiciará um fundo publico e comum para o que somos e fazemos. Em tais circunstâncias, as divergências estéticas não são tão agradáveis como as discordâncias acerca do gosto da comida (que são menos divergências do que diferenças). Quando se trata de construir um ambiente, nós não devemos ficar surpresos de que as divergências estéticas sejam objeto de litigâncias ferozes e coações legais –mesmo aqui na América, onde cada pessoa é soberana em sua propriedade.

Nós podemos rejeitar a hipótese de que a beleza é subjetiva sem adotar a concepção de que ela é objetiva. A distinção entre o subjetivo e o objetivo não é clara nem exaustiva. Eu prefiro dizer que os juízos de beleza expressam preferências racionais, sobre assuntos nos quais a concordância dos outros é muito solicitada e valorizada. Eles não são muito diferentes, nestes aspectos, dos juízos morais, e frequentemente dizem respeito a temas similares – como quando criticamos obras de arte por sua obscenidade, crueldade, ou sentimentalismo. A distância que podemos percorrer pelo caminho da discussão racional depende do que pensamos do segundo pressuposto, isto é, de que a beleza não importa.

Isso me traz de volta à anedota da casa do meu vizinho, com a sua decoração kitsch e painéis luminosos horrendos. Essas coisas são importantes para ele; e elas são importantes para mim. O meu desejo de me livrar delas é tão grande quanto o seu desejo de retê-las – talvez ainda maior, pois a minha preferência, ao contrario da dele, está profundamente arraigada num desejo de me adaptar ao que me cerca. Então aqui está uma prova de que a beleza importa – e também de que a tentativa de coordenar nossas preferências é vital para partilharmos nossa casa, nossa cidade, e nossa comunidade.

Nesse caso, no entanto, é necessário que haja um lugar para o julgamento estético no planejamento e na construção das cidades. Numa obra celebre, A Vida e a Morte das Grandes Cidades Americanas, publicada em 1961, Jane Jacobs argumenta que as cidades devem se desenvolver espontânea e organicamente, de modo a gravar em seus contornos o resultado não-intencional das transações consensuais entre seus moradores. Somente assim elas facilitarão o desenvolvimento pacifico da vida urbana. Uma verdadeira cidade é construída por seus moradores, na medida em que todos os seus aspectos reflitam o resultado da vontade dos seus inumeráveis habitantes, e não o que alguns autonomeados experts planejaram. E esse é o aspecto da velha Roma, de Siena, ou Istambul que mais atrai o viajante moderno. Alguns urbanistas interpretam o argumento de Jacobs no sentido de que demonstra que os valores estéticos podem ser deixados, para tomarem conta de si mesmos; outros, ao contrário, têm insistido que exemplos da Jacobs realmente derivam sua força dos valores estéticos que ela dissimula como side-constraints.

Certamente, nós devemos reconhecer que as cidades antigas, cuja complexidade orgânica Jacobs admirou, nos mostram um marco do planejamento: não um planejamento abrangente, certamente, mas uma inserção, na estrutura da cidade, de formas locais de simetria e de ordem, como o Piazza Navona em Roma, ou a mesquita de Solimão e seus arredores, em Istambul. E tais projetos são inteiramente motivados e orientados por valores estéticos. A preocupação principal dos arquitetos era ajustar-se a uma estrutura urbana existente, para alcançar uma harmonia local com o contexto de um ambiente historicamente dado. Não há maior catástrofe estética atingindo nossas cidades -- as europeias tanto quanto as americanas -- do que a ideia modernista de que uma construção deve destacar-se dos seus arredores, e se tornar uma declaração de sua própria originalidade. Tanto quanto a casa, as cidades dependem de boas maneiras; e as boas maneiras exigem a acomodação modesta à vizinhança em vez de a afirmação arrogante de isolamento. Os arquitetos que ganham grandes comissões hoje -- Frank Gehry, Richard Rogers, Daniel Libeskind, Norman Foster -- são pessoas que projetam construções como o Centre Bearboug em Paris ou o Guggenheim Museum em Bilbao, os quais se distinguem de seus arredores, ilhas de Ego num mar de Nós. Foster tem sido iluminado em suas viagens pela adorável cidade de Lisboa do século 18 e se ofendido com o nível de sua arquitetura, que nunca se ergue acima de um palácio aristocrático, e concentra toda atenção no lugar onde ocorre a vida humana, que é a rua. Ele está, portanto, se engajando numa campanha para construir uma grande torre de vidro acima da cidade, de modo a proporcionar um centro de atenção num lugar cuja beleza resulta precisamente do fato de que atenção não é centralizada, mas dispersa.

O alvo de Jane Jacobs não era, entretanto, a grosseria estilística, mas o funcionalismo, de acordo com o qual as construções são ditadas por suas finalidades, de modo a permanecerem unidas a elas para sempre. Uma vez que não há, na vida humana, algo como "para sempre", o resultado é que edifícios são abandonados depois vinte anos, e de fato cidades inteiras que ficam desabitadas como terrenos baldios quando a indústria local acaba. Esse efeito é agravado na América por leis de zoneamento absurdas que banem a indústria para uma parte da cidade, escritórios para outra, e lojas para outra, deixando as áreas residenciais desérticas durante o dia, e sem os principais centros de comunicação social. Uma cidade governada por leis de zoneamento morre ao primeiro choque econômico – e nós temos visto esse efeito desde Buffalo até Tampa, como áreas da cidade primeiro perdem sua função, então se tornam vandalizadas, e finalmente oferecem um fundo sórdido a cenas de violência e decadência. Ao varrer os moradores do centro da cidade, as leis de zoneamento americanas deixam-no desprotegido, a mercê de todo tipo de nomadismo, e repleto de edifícios que não podem nunca se adaptar às mudanças sociais e econômicas. A lei da etologia, que nos diz que a má-adaptação é o prelúdio da extinção, aplica-se também à cidade americana.

Além do mais, os estilos de construção funcionalistas, que se apropriam de quarteirões inteiros, ou introduzem cantos irregulares no caminho dos pedestres, impedem o aparecimento do principal espaço público, que é a rua. A rua, com portas que se lhe abrem, sorrindo, das casas, são as artérias e as veias, os pulmões e o aparelho digestivo da cidade – os canais através dos quais toda a comunicação flui. Uma rua em que as pessoas vivem, trabalham, e se respeitam, renova-se a si mesma como a vida se renova; ela tem olhos para vigiá-la, e formas de vida compartilhadas para preenchê-la. Nada é mais importante do que defender a rua contra as vias expressas e autoestradas, e contra as disposições legais de zoneamento que proíbem o genuíno estabelecimento.

A ideia de Jacobs tem seguido o destino de toda profecia registrada na história, que é ser ignorada até que seja tarde demais para agir a respeito. A sua mensagem tem sido retomada e aperfeiçoada nos últimos anos por James Howard Kunstler, que, em The Geography of Nowhere [A Geografia de Lugar Algum], descreve os desastres estéticos e morais da urbanização americana, como as leis de zoneamento levam constantemente as pessoas para mais longe dos seus locais de trabalho e recreação, deixando os destroços abandonados de negócios efêmeros em seu rastro. Kunstler tem defendido (em The Long Emergency) que a suburbanizacao, a única solução consensual para o desastre, é insustentável, e que a América está preparando para si uma situação crítica de larga escala, quando o petróleo acabar.

Quer você aceite ou não o cenário de destruição de Kunstler, a questão que Jacobs nos legou permanece. Como é que vamos sair da confusão? Se o problema é planejamento, como podemos planejar para evitá-lo? E não há distinção entre um plano bom e um plano ruim? Afinal de contas, Éfeso, e Bath, e milhares de outros triunfos da urbanização, não foram planejados? Talvez a mais sábia resposta para o argumento de Jacobs seja, portanto, salientar a distinção entre os planos e as side-constraints [proibições laterais]. Apesar de a liberdade econômica ser necessária se vamos resolver o problema da coordenação econômica, a liberdade deve ser limitada e contida pela lei. Side-constraints são garantias de que as fraudes não vão prosperar. Do mesmo modo em relação à cidade: deve haver planejamento, mas ele deve ser encarado negativamente, como um sistema de side-constraints, ao invés de positivamente, como uma maneira de "assumir o comando" do que acontece e de onde acontece.

E aqui, parece-me, é onde a beleza se torna tão importante. Ao longo do tempo, as pessoas fixam estilos, padrões, e vocabulários que exercem, nos edifícios das cidades, a mesma função que as boas maneiras exercem entre os vizinhos. Um "vizinho", de acordo com a etimologia anglo-saxã, é aquele "constrói nas proximidades". Os edifícios que são construídos em nossa vizinhança são importantes para nós da mesma forma que os nossos vizinhos o são. Eles exigem a nossa atenção, e moldam as nossas vidas. Eles podem nos esmagar ou nos acalmar; eles podem ser uma presença hostil ou um lar. E a função dos valores estéticos na prática da arquitetura é garantir que a primeira exigência de todo edifício seja servir – ou seja, que ele deve ser um membro adaptado de uma comunidade de vizinhos. Os edifícios precisam se amoldar, estarem lado a lado de modo apropriado; eles estão submetidos às normas das boas maneiras tanto quanto as pessoas estão. Esta é a verdadeira razão para a importância da tradição na arquitetura – isso transmite o tipo de conhecimento prático requerido pela vizinhança.

A arquitetura não é como a poesia, a música, ou a pintura – uma arte que pertence ao mundo do lazer e da luxúria. Ela sobrevive independentemente de seu mérito estético, e só raramente é a expressão de um gênio criativo. Existem grandes trabalhos de arquitetura, e muitas vezes – como as Igrejas de Mansart ou Borromini – eles são o trabalho de uma única pessoa. Mas a maioria dos trabalhos de arquitetura não é grande e não deve aspirar à grandeza; mais do que qualquer outra, as pessoas comuns devem reivindicar as prerrogativas do gênio quando conversam com seus vizinhos. O que importa na arquitetura é o surgimento de um estilo vernacular assimilável – uma linguagem comum que permita aos edifícios estarem lado a lado sem ofender uns aos outros.

As cidades americanas foram construídas fazendo-se de uso peças padronizadas de três mil anos da tradição que conhecemos como classicismo. Os velhos livros protótipos (como aqueles publicados por Asher Benjamin em Londres em 1797 e 1806, e que são responsáveis pela natureza outrora agradável das cidades de New England, Boston aí incluída) ofereceram precedentes para os construtores, modelos que eram prazerosos e harmonizados, e que poderiam ser invocados para não estragar ou degradar as ruas nas quais eles eram colocados. Isso é o que vemos nas ruas das cidades europeias: não vemos a imposição de alguns esquemas ou proporções globais, mas o crescimento orgânico da rua a partir da repetição de detalhes compatíveis. O fracasso do modernismo, em minha opinião, não reside no fato de que não produziu nenhum edifício grande ou belo – a Capela de Ronchamp, e as casas de Frank Lloyd Wright provam abundantemente o contrário. Reside na ausência de quaisquer modelos ou tipos confiáveis, que possam ser utilizados em situações estranhas ou novas, de modo a harmonizar-se espontaneamente com a decoração urbana, e de modo a conservar a essência da rua enquanto lar comum. A degradação das nossas cidades é resultado do “vernáculo modernista”, cujo principal expediente é empilhar camadas horizontais, com esquinas salientes e intrusivas, construir sem consideração pela rua, sem fachadas coerentes, e sem relação inteligível entre os seus vizinhos. Em outras palavras, a degradação a que assistimos, e que é a real causa da rápida deslocação para os subúrbios, resulta da ausência de side-constraints estéticas.

Quando não existem as side-constraints, os custos devem não ser avaliados apenas em termos de sentimentos de desconforto e desabrigo das pessoas que têm de trabalhar em terras improdutivas. Os custos são tanto ambientais quanto econômicos. Os prédios de vidro e de estrutura de aço, construídos sem fachadas e indiferentes ao alinhamento com seus vizinhos, são um desastre ecológico. A arquitetura tradicional concentra-se na generalidade da forma, em detalhes que incorporam o conhecimento tácito de como se viver num edifício e adaptar-se a ele. Deste modo, a arquitetura tradicional, por sua vez, adapta-se a nós. Adapta-se aos nossos usos, e acolhe tudo o quanto fizermos. Por isso, ela sobrevive – da maneira que Georgetown e Old Town Alexandria têm sobrevivido, embora prejudicadas, infelizmente, por leis de zoneamento. A arquitetura modernista não pode mudar suas finalidades, e os arquitetos reconhecem que suas construções não terão uma duração de vida de vinte anos. Construindo com esse ânimo, você não está edificando uma residência, muito menos um bairro. Você está construindo uma barraca extremamente cara e ecologicamente destrutiva. O impacto ambiental da sua demolição é enorme, e a energia despendia para construí-la tem de ser desperdiçada de novo ao demoli-la e ainda de novo ao substituí-la.

A este respeito, vale a pena também lembrar uma grande descoberta humana, a janela. As janelas das casas “pattern-book”[i] tradicionais formam detalhes agradáveis e humanizadores; elas são os olhos da casa. No clima quente, elas podem ser abertas para deixar a brisa entrar, e permitir uma circulação de ar. No clima frio, elas podem ser fechadas. Elas são adornadas com molduras simples e coroadas com arquitrave e pedra angular que realçam suas proporções. Elas estão integradas na ordem implícita da fachada, de modo que é fácil encontrar a porta de correspondência ou a janela do sótão que ficam bem ao lado dela. Em tudo isso nós notamos uma acumulação de conhecimento prático que surge das restrições-laterais estéticas em algo semelhante ao modo como os negócios e as transações de mercado surgem das boas maneiras.

As janelas dos edifícios centrais modernos não são olhos; elas não humanizam a fachada; não sugerem nenhuma forma ou padrão que possa ser reiterado, e não colocam quaisquer limitações sobre o que pode ou não pode ser colocado ao lado, acima, e abaixo delas. Elas não podem ser abertas quando está calor, e elas impossibilitam a circulação de ar de fora do edifício. Assim, o edifício depende de um consumo de energia durante todo o ano, no inverno para esquentá-lo, no verão para esfriá-lo, e o ar mofado que circula por dentro prende e perpetua as doenças de quem ali -- produzindo a tão bem conhecida "síndrome do prédio doente", que é responsável por muitos dias de trabalho perdidos. O resultado não é apenas um desastre estético, é um desastre ecológico também. E exemplifica uma característica importante do mundo moderno, que é o trabalho duro que está sendo dispendido constantemente em perder conhecimento. O vernáculo moderno, que concebe as construções como cortinas de vidros coloridos levantados sobre andaimes de concreto e aço, representam também um avanço incomum para a ignorância e um desastre ecológico gigante. E os arquitetos e seus teóricos dedicaram uma imensa quantidade de trabalho intelectual para alcançar esse resultado.

Eu tenho me concentrado na arquitetura uma vez que ela fornece uma ilustração clara dos custos sociais, ambientais e econômicos de se ignorar a beleza. Mas há outro custo, também, e é um custo que testemunhamos em nossas vidas individuais tanto quanto na comunidade. Este é o custo estético. As pessoas precisam de beleza. Elas precisam do sensação de estar em casa em seu mundo, e estar em comunicação com outras almas. Em muitas áreas da vida moderna -- na música pop, na televisão e no cinema, na linguagem e na literatura --a beleza está sendo substituída por clichês estridentes e ávidos por atenção. Nós temos sido tirados para fora de nós mesmos por gestos grosseiros e insolentes de pessoas que querem prender nossa atenção sem dar, porém, nada em troca. Embora este não seja o lugar para defender o ponto, talvez devesse ser dito que essa perda da beleza, e o desprezo por sua busca, é um passo em direção do caminho de uma nova forma de vida humana, em que o ter substitui o doar, e concupiscências vagas substituem os amores reais.









[i] Guias e manuais de construção do século 18 e 19 que continham detalhes de construção.















 

quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

Divertimento de celebridade vs alegria aterradora - Roger Scruton

30 de março de 2013

The Spectator[1]

A nossa cultura da celebridade se desenvolve a partir de uma ideia distorcida da vida excelente.

A páscoa é um tempo de renascimento e renovação. É difícil renovar a si mesmo, não apenas porque somos fracos e temos tentações, mas porque a nossa cultura da busca pelo prazer lança desprezo sobre todas as formas antigas de sacrifício, e concebe a realização como um divertimento. O “divirta-se” substituiu o “saia-se bem” como felicitação de despedida, e tudo aquilo de que depende a nossa felicidade foi velado sob uma máscara de prazer imediato.

Você não precisa ser um filósofo ou um teólogo para reconhecer que o prazer e a felicidade não são a mesma coisa. Existem prazeres perversos, destrutíveis, viciantes, desprezíveis: mas não existe algo chamado felicidade ímpia, destrutiva, ou viciosa. Quem é feliz tem a posse do maior bem humano; a felicidade não faz incursões em nossa liberdade; ela traz amor pelos outros e traz alegria a todos que a encontram. Ela está tão longe do prazer quanto a saúde da intoxicação. Daí a definição de Aristóteles da felicidade como “uma atividade da alma em conformidade com a virtude”.

Os prazeres são de muitos tipos; mas aqueles que são mais perigosos para nós surgem do consumo. Quando você consome uma coisa, você também a destrói. Durante um breve momento você sente prazer por segurá-la em suas mãos, mas o seu prazer significa ruína dela. Uma vez ingerido o hambúrguer ou a taça de vinho, aparece em seu lugar a sensação de saciedade e satisfação – ou, se você tiver chegado ao estágio do vício, a ânsia servil por mais. As pessoas sempre reconheceram que exaltar os prazeres do consumo como um objetivo de vida humana é privá-la de sua finalidade. No entanto, o grande erro continua. E existem também outros prazeres que, embora não destruam aquilo que os origina, têm como recompensa um resultado que é ou ranço ou vício. A tela de todo quarto de hotel tenta o convidado a esses prazeres fáceis – fáceis de sentir, difíceis de escapar. Em tudo que nos circunda em nossa sociedade vemos o preço que as pessoas pagam por seus prazeres: uma sensação de que nenhum prazer é proibido, mas todo prazer é obsoleto.

Além disso, surge a cultura da celebridade. Surge a ilusão de que alguém, em algum lugar, deve estar se divertindo verdadeiramente, e não tendo apenas uma diversão ilusória que se apaga tão logo é acessa. E nós voltamos os nossos olhos para aqueles lugares onde essa diversão verdadeira parece estar mais evidente – lugares onde a fama, a saúde, a boa aparência e a excitação sexual sobejam. E enchemo-nos de inveja. Lá está o sentido da vida, são eles, e não eu, que o possuem. Buscamos uma prova de que a celebridade é, afinal de contas, a criatura fracassada, infeliz, mal-amada, que desejaríamos que fosse. E dessa maneira passamos a experimentar outro tipo de prazer: o prazer de desejar a desgraça do outro, que os alemães chamaram schadenfreude e que é um prazer tão insatisfatório quanto qualquer outro que conhecemos. Santo Agostinho nos lembra de que a inveja e a malícia têm uma mesma espada: mas ela alcança seu alvo apenas se primeiro trespassa o corpo daquele que a empunha. Ele não é preciso o inquérito Leveson para nos lembrar disso; mas nós ainda precisamos tirar a lição correta daqueles eventos tediosos, a qual não é que devemos censurar a imprensa, mas que devemos censurar a nós mesmos. A causa principal do jornalismo sórdido é o desejo de lê-lo.

Onde quer que encontremos o culto da celebridade, portanto, nós encontramos uma profunda infelicidade. “Diversão” tornou-se o maior bem, mas a diversão está sempre fora do alcance, disponível apenas em outro mundo inatingível onde as estrelas estão dançando. Enquanto isso, a inveja e o ressentimento coloram o mundo aqui em baixo, e não há alívio ao salvar os prazeres de consumo.

Se você quer uma prova de que nosso mundo é assim, então você deve observar a arte moderna – mil subprodutos do famoso urinol de Duchamp que acabaram na Tate Modern, e que são a prova do status de celebridade das pessoas que os produziram. Aqui estão os monumentos de um mundo de onde a beleza foi expulsa, e no qual as sensações governam em seu lugar. Isso não é arte, mas acondicionamento: fortes cores de supermercados, temas chocantes e imagens grosseiras, como os bonecos humanoides dos irmãos Chapman – todos contando a mesma história de que não há sentido no mundo, mas apenas diversão, e que as diversões são enfadonhas. Aqui está a prova de que não existe uma coisa chamada diversão verdadeira; que diversão é uma ilusão em todas as suas formas.

Para todos aqueles que compartilham do meu ceticismo em relação à vida de consumo e de culto da celebridade, e que se afastam da diversão, eu recomendo uma visita ao Tate Modern. Trata-se de um lembrete preocupante das coisas que a galeria não contém, como a felicidade, a beleza e o sagrado, coisas que nós celebramos, ou deveríamos celebrar, neste tempo de renovação espiritual. Tais coisas, nós as valorizamos, mas não as podemos consumir. E porque não as podemos consumir, elas nos oferecem consolação e um abrigo permanente.

Considere a beleza – a beleza das flores e paisagens, dos pássaros e cavalos, das coisas que vemos, tocamos e cheiramos enquanto caminhamos pelo campo. Nós estamos em completa harmonia com essas coisas. Não temos desejo de consumi-las ou destruí-las. Nós olhamos para elas com gratidão, e elas refletem de volta para nós as nossas emoções, como que nos abençoando à medida que as abençoamos. Essa é uma experiência elementar que consideramos difícil colocar em palavras. Mas nós sabemos que não se trata de diversão, que ela não depende de fama ou saúde ou prazeres auto-indulgentes. Trata-se de nos reconectar com nossa essência humana, de nos encontrar em paz e em casa no mundo.

A beleza tem muitas formas, é claro, e a beleza natural é apenas uma delas. Existe a beleza da arte e da arquitetura, da música e das formas humanas. Mas, em todas as suas variedades, a beleza tem uma qualidade notável: ela oferece consolação sem consumo: o seu desfrutar não destrói o objeto belo, mas simplesmente amplia seu poder. O júbilo da beleza nunca é vicioso, e, no entanto, nos afeta intensamente. E quando lá voltamos a buscar mais, não o fazemos por um desejo ou necessidade, mas por um regresso ao nosso lar interior, a fim de compreender o que somos.

O belo e o sagrado estão conectados em nossos sentimentos, e ambos são essenciais para a busca da felicidade. Eu penso que não é por acaso que, numa vida de prazer consumista e de “diversão” alardeada, surge o hábito de dessacralizar a forma humana e a vida que nela está. O culto da celebridade é um substituto da fé religiosa, e também uma inversão dela. Ele oferece profanação em lugar da santidade, inveja no lugar da reverência, e diversão no lugar de bem-aventurança. Mas isso não satisfaz ninguém. O curioso é que o caminho da felicidade continua aberto diante de nós e ainda assim muitas pessoas não o trilham.

Questões para as quais não há respostas, Roger Scruton


The New Statesman (1)
23 de setembro de 2013 
 


A nossa natureza enquanto seres questionadores parece ter um alto custo. E talvez já não estejamos mais preparados para pagá-lo.


Se eu me pergunto o que faz de nós seres humanos, uma resposta salta-me de imediato – não é a única, mas é a sugerida pela questão. O que nos torna humanos é que fazemos perguntas. Todos os animais têm interesses, instintos e concepções. Todos os animais moldam para si uma ideia do mundo em que vivem. Mas só nós questionamos o nosso ambiente em torno. Apenas nós recusamos ser definidos pelo mundo onde vivemos, e em vez disso tentamos definir, por nós mesmos, nossa própria natureza .

A história intelectual da nossa espécie é em grande medida definida por essa tentativa. Nós somos animais como os outros? Será que temos almas assim como temos corpos? Será que somos ligados, na ordem das coisas, aos anjos, aos demônios e deuses? Toda ciência, toda arte, toda religião e toda filosofia dignasdo nome, começa com uma pergunta. E é porque temos perguntas que a vida humana é tão profundamente gratificante e tão profundamente preocupante, também.

Nem todas as perguntas têm respostas. Em matemática e nas ciências nós resolvemos nossos problemas do mesmo modo como os criamos. Mas, na arte e na filosofia, as coisas não são tão simples. O grande solilóquio de Hamlet começa com a frase: – “Ser ou não ser: eis a questão”. A peça gira em torno dessa pergunta. Seria melhor não existir? Existe algo na vida humana que faz valer a pena? Quando, confrontados diante da amplitude da traição e intrigas humanas, caímos em completo desprezo em relação à nossa espécie, existe algum truque racional , alguma percepção, algum argumento ou algum apelo à autoridade superior que irá restaurar em nós a vontade de viver?

Quando eu olho para os artistas do passado, muitas vezes me impressiono com a medida em que sua obra se desenvolveu em resposta a uma pergunta. Milton se perguntou como o mundo deteriorado em que viveu poderia ser a obra de um Deus sumamente bom e sua resposta foi "Paraíso Perdido". Bach perguntou a si mesmo como as variações e permutações fluem dos movimentos básicos na música e sua resposta foi "A Arte da Fuga". Rembrandt perguntou a si mesmo como a alma se revela na carne e o que as luzes e texturas dos nossos corpos significam, e sua resposta foi sua série extraordinária de autorretratos. É como se, na obra de arte, a pergunta fosse sempre o de que se trata.

O poema de Milton insere a questão da relação do homem com Deus no centro de nossa consciência. O poema não responde à pergunta, porém, em vez disso, nos infunde admiração e temor, em resposta. A admiração e o temor são a dieta do artista e sem isso o mundo nos seria bem menos significativo do que é.

O mesmo é verdadeiro para a filosofia. Embora haja filósofos que fornecem respostas, geralmente são as suas perguntas, e não as suas respostas, que sobrevivem. Platão perguntou como é que podemos pensar sobre a propriedade da 'vermelhidão' e não apenas sobre coisas vermelhas. Como as limitadas mentes humanas podem ter acesso a realidades universais? A pergunta de Platão ainda está conosco, mesmo que poucas pessoas hoje aceitem sua resposta. Aristóteles perguntou como pode haver tempo e mudança num universo ordenado. Há uma força motriz que coloca tudo isso em movimento? Poucos aceitariam a resposta de Aristóteles a essa pergunta: mas a pergunta permanece. Como pode haver tempo, mudança, processo e devir, em um mundo que poderia ter ficado permanentemente em repouso? Kant perguntou como é que os seres humanos, que fazem parte da ordem natural, podem livremente decidir fazer isso em vez daquilo, podem tomar responsabilidade por suas decisões e se responsabilizarem-se mutuamente pelas consequências dos seus atos.

Kant era honesto em reconhecer que a questão está além da nossa capacidade de responder; mas enquanto não a tenhamos respondido, ele sustenta, nós não temos nenhuma compreensão real da nossa condição.

Nos monastérios, bibliotecas e cortes da Europa medieval as grandes questões eram constantemente debatidas. As pessoas poderiam ser queimadas na fogueira por causa de suas perguntas, e outras poderiam atravessar a terra e o mar para punir as pessoas por suas respostas. Na Renascença e de novo no Iluminismo as grandes questões foram feitas e respondidas, e novamente a morte e a destruição foram o resultado, como nas guerras religiosas do século 16 e 17 e na Revolução Francesa. O comunismo e o fascismo, ambos começaram na filosofia, ambos eram respostas promissoras às questões últimas e ambos levaram a assassinatos em massa.

A nossa natureza enquanto seres questionadores parece ter um alto custo. E talvez já não estejamos mais preparados para pagá-lo. Certamente, se nós olhamos ao nosso redor, hoje, nós vemos uma massa de respostas prontas e muito poucas tentativas de definir as perguntas que as justificariam. Deveríamos, então, desistir do hábito de fazer perguntas? Acho que não. Deixar de fazer perguntas seria deixar de ser plenamente humano.

(1) Artigo publicado em 
http://www.newstatesman.com/ideas/2013/09/not-all-questions-have-answer-0

Escondendo-se atrás da tela - Roger Scruton

Verão de 2010

A nossa auto-imagem, e as relações humanas de modo geral, foram profundamente afetadas pela Internet e pela facilidade com que as imagens das outras pessoas podem ser chamadas à tela do computador para se tornarem objetos de atenção emocional. Como nós devemos conceituar essa mudança, e qual é o seu efeito na condição psicológica daqueles mais inclinados a construir seu mundo de interesses e relacionamentos através de uma tela? Essa mudança é tão prejudicial quanto querem nos fazer acreditar? Ela debilita a nossa capacidade de nos relacionar verdadeiramente com os outros, substituindo-a por uma mera afinidade imaginária? Ou é relativamente inofensiva, tão inocente quanto falar ao telefone com um amigo?

Primeiro, temos de fazer algumas distinções. Todos nós usamos o computador para enviar mensagens aos nossos amigos e às pessoas com quem nos relacionamos. Esse tipo de comunicação não é diferente em qualquer aspecto fundamental da prática antiga de escrever cartas, exceto por sua velocidade. Claro, não devemos considerar a velocidade um recurso trivial. A rapidez das comunicações modernas não acelera apenas o processo pelo qual os relacionamentos são formados e rompidos; ela muda inevitavelmente a maneira como essas relações são realizadas e compreendidas. Com a Internet e o telefone, a ausência é menos dolorosa, mas também perde algo da sua pungência; demais, os emails são raras vezes compostos tão cuidadosamente como as cartas, pois a própria lentidão com que a carta caminha ao seu destino nos impele a colocar mais dos nossos sentimentos nas palavras. Entretanto, o email é uma realidade, e não só uma realidade virtual: as mudanças que ele traz afetam comunicações reais travadas entre pessoas reais.

Mas a existência de redes sociais como o Facebook -- onde boa parte da comunicação também é real e entre pessoas reais -- não envolve qualquer tentativa de simplesmente substituir uma realidade virtual por uma actual. Ao contrário, elas parasitam os relacionamentos reais que engendram, alterando-os, em grande medida, ao incentivar as pessoas a se colocarem em exibição, e a tornarem-se voyeurs da exibição dos outros. Alguém pode alegar que a existência desses sites de redes sociais propicia um beneficio social e psicológico, e ajuda aqueles que evitam se apresentar diretamente ao mundo, a ganharem um espaço público e uma identidade. Tais sites também permitem que as pessoas mantenham contato com um vasto círculo de amigos e colegas, de modo a aumentar o leque de suas afeições, e a espalhar pelo mundo bons sentimentos e boa vontade.

Porém, algo de novo já está entrando no mundo das relações humanas com esses sites aparentemente inofensivos. Há uma nova facilidade com que as pessoas podem fazer contato umas com as outras por uma tela. Não há mais necessidade de se levantar da sua cadeira e fazer uma viagem à casa do seu amigo. Não há mais necessidade de reuniões semanais, ou do círculo de amigos no restaurante do centro da cidade ou no bar. Todas essas maneiras de fazer contato que demandam esforço podem ser dispensadas com um simples toque no teclado, que pode te levar para onde você queria estar, no site que define quem são os seus amigos. Mas como algo que é buscado e desenvolvido de maneira tão fácil e sem custos pode ser uma amizade real?

Amizade e controle

A amizade real mostra-se na ação e na afeição. O amigo verdadeiro é aquele que oferece resgate nas suas horas de necessidade, conforto na adversidade e que compartilha com você o sucesso que ele mesmo obteve. O que é difícil de realizar no computador –- afinal de contas, trata-se aqui, em primeiro lugar, de um espaço para informação, que é apenas um espaço para ação na medida em que a comunicação é uma forma de ação. Somente as palavras, e não a mão ou as coisas que ela carrega, podem, em tais condições, confortar aquele que sofre, afastar um golpe do inimigo ou fornecer qualquer um dos benefícios tangíveis da amizade em tempos de necessidade. Alguém poderia argumentar que, geralmente, as pessoas satisfazem a sua necessidade de companheirismo em relacionamentos realizados através de computadores, a não ser que se trate de desenvolver amizades do tipo que oferece ajuda e conforto nos testes reais da vida humana. As amizades realizadas primariamente no computador não podem ser facilmente rompidas, e se o são, não há qualquer garantia de que não haverá tensão. Na verdade, é precisamente o custo-livre dessas amizades, a sua característica tela-amigável, que atrai muitas pessoas –- tanto é assim que os meus alunos dizem que temem o vício, e freqüentemente proíbem-se de acessar sua conta Facebook por dias a fio, para continuar com suas vidas e relacionamento reais.

O que nós estamos testemunhando é uma mudança na atenção que faz mediação e dá origem à amizade. Nas condições outrora normais do contato humano, as pessoas se tornavam amigas estando em presença umas das outras, compreendendo os vários sinais sutis, verbais e corporais, pelos quais o outro atesta o seu caráter, emoções e intenções, construindo afeição e confiança em conjunto. A atenção estava fixada no outro –- no seu rosto, palavras e gestos. E a sua natureza enquanto pessoa encarnada inspirava sentimentos amigáveis que eram o foco da relação. As pessoas que constroem amizades dessa maneira estão fortemente conscientes de que se mostram ao outro como este se lhes mostra. O rosto do outro é um espelho em que elas vêem os seus próprios rostos. Precisamente porque a atenção está fixada no outro há uma oportunidade para o autoconhecimento e para a auto-descoberta, para essa expansão da liberdade na presença do outro que é uma das maiores alegrias da vida humana. O objeto de sentimentos humanos olha de volta a você, e responde amigavelmente à sua atividade livre, ampliando tanto a sua consciência como a dele mesmo. Tal como tradicionalmente concebida, a amizade era regida pela máxima “conhece-te a ti mesmo”.

Quando a atenção está fixada no outro como alguém que é intermediado pela tela, no entanto, há uma forte mudança de ênfase. Para começar, eu tenho o meu dedo no botão; a qualquer momento eu posso desligar a imagem, ou clicar para realizar um novo encontro. A outra pessoa é livre no seu próprio espaço, mas não é realmente livre no meu espaço, onde eu sou o árbitro último. Eu não estou me arriscando em uma amizade na mesma medida em que eu me arrisco quando eu encontro outra pessoa face a face. É claro, essa pessoa pode então prender minha atenção com suas mensagens, imagens e pedidos de que eu permaneça grudado na tela. Mas, em última análise,  trata-se de uma tela à qual eu estou grudado, e não do rosto que eu vejo nela. Toda interação com outrem se dá a certa distância, e ser afetado por ela se torna até certo ponto uma questão de minha própria escolha.

Nessa maneira cibernética de conduzir relacionamentos, eu gozo de um poder sobre o outro do qual ele mesmo não está realmente consciente –- uma vez que não está consciente do quanto eu desejo retê-lo no espaço diante de mim. E o poder que eu tenho sobre ele, ele o tem sobre mim: a mesma liberdade que me foi negada no seu espaço é-lhe negada no meu. Ele também, portanto, não vai se arriscar; ele aparece na tela apenas com a condição de manter o controle final sobre si mesmo. Isso é algo que eu sei sobre ele e que ele sabe que eu sei –- e vice-versa. Ali, cresce entre nós um encontro de risco reduzido, em que cada um está consciente de que o outro está fundamentalmente retido, soberano em seu castelo cibernético inexpugnável.

Mas essa não é a única maneira pela qual os relacionamentos cibernéticos são afetados pelo meio em que se formam. Por exemplo, enquanto a troca de mensagens está muito intensa no Facebook, boa parte dela é despersonalizado por natureza: o uso de mensagens privadas, para muitos, foi suplantado por postagens de mensagens num “mural” público de um amigo, o que significa que a rede inteira é agora participante na comunicação. E enquanto a postagem no mural ainda mantém a aparência de contato impessoal, provavelmente a forma mais comum de comunicação no Facebook é a “atualização de status”, uma mensagem que é difundida por uma pessoa a todas as outras (ou, dito de outro modo, a ninguém em particular).

Todas essas formas de comunicação aparecem em competição com tudo o mais que possa ser ativado pelo mouse. Você “clica” no seu amigo, assim como você pode clicar numa notícia ou num vídeo clipe. Ele é apenas um dentre os muitos produtos em exposição. Tornar-se amigo dele, e relacionar-se com ele de modo geral, pertence à categoria dos divertimentos e das distrações: uma mercadoria que pode ser escolhida ou não, dependendo das concorrentes. Isso contribui para uma demolição radical dos relacionamentos pessoais. Suas amizades já não são mais especiais para você ou definitivas para a sua vida moral: elas são diversões, objetos que não têm vida real em si mesmos, mas a vida que têm é emprestada do interesse que você tem por elas –- o que os marxistas chamariam “fetiches”.

Há um argumento forte a ser feito, aqui, segundo o qual  a experiência do Facebook, que atrai milhões de pessoas de todo o mundo, é um antídoto contra a timidez, uma maneira pela qual as pessoas, que de outra maneira estariam paralisadas pelo temor de se arriscar na vida social, são capazes de superar sua incapacidade e desfrutar da rede de relações afetivas da qual tanto depende a nossa felicidade. Mas há o argumento igualmente forte de que a experiência Facebook -- na medida em que está suplantando o domínio físico das relações humanas -- hipotastiza a timidez, conserva suas principais características e coloca um afeto de tipo Ersatz no lugar do afeto real que a timidez evita. Ao colocar uma tela entre você e o amigo, além de manter o controle final sobre o que aparece na tela, você também se esconde do verdadeiro encontro –- negando poder à liberdade do outro de desafiar você em sua natureza profunda, e de lhe chamar, aqui e agora, para tomar responsabilidade por si mesmo e por ele.

Enquanto eu crescia, ensinaram-me que a timidez (ao contrário da modéstia) não é uma virtude, mas um defeito, e que ela surge quando nos valorizamos demais -– o que nos proíbe de nos arriscar no encontro com os outros. Removendo os riscos reais dos encontros interpessoais, a experiência Facebook pode encorajar uma espécie de narcisismo, uma postura de auto-respeito em algo que devia ser uma amizade de respeito pelos outros. Com efeito, não pode haver nada, aqui, além da auto-exibição, já que os outros estão listados num site, não tendo nenhum valor por si mesmos.

A liberdade requer contexto

Na sua maneira normal de proceder, o encontro Facebook é ainda um encontro –- embora atenuado –- entre pessoas reais. Mas, cada vez mais, a tela está tomando conta –- deixando de ser um meio de comunicação entre pessoas reais que existem fora dela, e se tornando o lugar onde as pessoas finalmente alcançam a realidade, o único lugar em que elas se relacionam com os outros de modo coerente. Esse próximo estágio está evidente no fenômeno “avatar”, em que as pessoas criam personagens virtuais, em mundos virtuais, como representantes de si, de modo a viverem como controladores auto-complacentes por trás da tela, expostos a nenhum perigo e desfrutando ainda de um tipo de afeição substitutiva nas aventuras do seu ego cibernético.

O jogo Second Life oferece um mundo virtual e lhe convida a entrar nesse mundo na forma de um avatar construído a partir de uma coleção de modelos. O jogo tem suas próprias lojas e as compras são feitas com sua própria moeda. Ele dispõe de imóveis residenciais e comerciais para seus avatares. Ao final de 2009, a companhia que criou o Second Life anunciou que sua base de usuário havia registrado coletivamente mais de um bilhão de horas no sistema e que as transações de negócios online somavam mais de um bilhão de dólares.

Second Life também oferece oportunidades para ação “social”, em que as posições sociais podem ser alcançadas por mérito –- ou, pelo menos, mérito virtual. Nesse meio, as pessoas podem desfrutar de versões sem-custo das emoções sociais e podem se tornar heróis da “compaixão”, sem mover um dedo no mundo real. Em um incidente notável, em 2007, um homem tentou processar um avatar por roubo de sua propriedade intelectual no Second Life. A propriedade mesma era um “entretenimento adulto” –- um dos vários produtos do Second Life agora disponíveis que permitem ao seu ego cibernético realizar suas fantasias mais animalescas sem qualquer risco para si. Houve muitos casos de casais que nunca haviam se encontrado pessoalmente e que conduziam relações adulteras inteiramente no espaço cibernético; eles normalmente não mostravam nenhuma culpa em relação a seus esposos e, na verdade, exibiam orgulhosamente suas emoções como se tivessem alcançado algum tipo de progresso moral, e asseguravam que foram apenas seus avatares, e não eles mesmos, que acabaram indo pra cama.

A maioria das pessoas veria esse estado de coisas como doentio. Uma coisa é colocar uma tela entre você e o mundo; outra é viver no mundo dessa tela como a esfera primária dos seus relacionamentos. Se uma pessoa investe sua vida emocional em aventuras de um avatar, ela se retrai completamente dos relacionamentos reais. Em vez de ser um meio para o aumento dos relacionamentos que existem fora dela, a Internet pode se tornar o único palco da vida social – mas uma vida irreal envolvendo pessoas irreais. Tal pensamento faz reacender todas aquelas afirmações outrora em voga sobre a alienação e o fetichismo da mercadoria, dos quais Marx e seus seguidores acusaram a sociedade capitalista. O nerd que controla o avatar, essencialmente, “coloca seu ser fora de si mesmo”, como eles diriam.

A origem dessas críticas repousa numa idéia de Hegel, uma idéia de importância duradoura que ressurge constantemente sob novas roupagens, especialmente nos escritos dos psicólogos preocupados em mapear os contornos da felicidade cotidiana. A idéia é esta: nós, seres humanos, realizamo-nos através de nossas próprias ações livres, e pela consciência de que essas ações carregam o nosso mérito individual. Mas nós não somos livres num estado de natureza, nem temos, fora do mundo das relações humanas, o tipo de auto-consciência que nos permite valorizar e desejar nossa auto-realização. A liberdade não pode ser reduzida a escolhas desimpedidas das quais mesmo um animal pode desfrutar; nem é a auto-consciência simplesmente uma questão de imersão prazerosa nas experiências imediatas, como o rato pressionado interminavelmente sobre um circuito aprazível.

A liberdade implica um engajamento ativo com o mundo, em que o antagonismo é encontrado e superado, os riscos são tomados e as satisfações são sopesadas: trata-se, em suma, de um exercício da razão prática, em busca de objetivos cujos valores devem justificar os esforços necessários para alcançá-los. Da mesma maneira, a autoconsciência, em sua forma plenamente realizada, implica não apenas uma abertura à experiência presente, mas um senso da minha própria existência enquanto indivíduo, dotado de planos e projetos que podem ser realizados ou frustrados, e de uma concepção clara do que eu estou fazendo, por que propósito e com qual expectativa de êxito.

Todas essas idéias estão contidas no termo introduzido primeiramente pelo filosofo Johann Gottlieb Fichte, para designar a meta interior de uma vida pessoal livre: Selbstbestimmung, autodomínio ou certeza de si. A afirmação crucial de Hegel é que a vida da liberdade e da certeza de si só pode ser obtida através dos outros. Eu me torno plenamente quem realmente sou, apenas nos contextos que me impelem a reconhecer que eu sou outro nos olhos dos outros. Eu não conquisto a minha liberdade e, só em seguida, por assim dizer, experimento-a no mundo das relações humanas. É só entrando nesse mundo, com seus riscos, conflitos e responsabilidades, que eu venho a me conhecer como livre, a desfrutar de minha própria perspectiva e individualidade, e a me tornar uma pessoa realizada entre outras.

Em Fenomenologia do Espírito Filosofia do DireitoHegel narra muitas parábolas prazerosas e provocativas sobre a maneira como o sujeito conquista a liberdade e a realização por meio de sua Entäusserung – sua objetivação – no mundo dos outros. O estatuto dessas parábolas -– se elas são argumentos ou alegorias, análises conceituais ou generalizações psicológicas -– foi sempre matéria de discussão. Mas alguns psicólogos  agora discutiriam a afirmação fundamental que está subjacente a elas: a liberdade e a realização do eu ocorrem apenas mediante o reconhecimento do outro. Sem os outros, a minha liberdade é uma cifra vazia. E o reconhecimento do outro envolve tomar plenamente a responsabilidade por minha própria existência como indivíduo que sou.

Em seu esforço para “colocar Hegel sob seus pés”, o jovem Marx traçou um contraste importante entre a liberdade verdadeira que nos chega pelos relacionamentos com outros indivíduos e a escravidão velada que ocorre quando as nossas investidas para fora não se dirigem a sujeitos, mas a objetos. Em outras palavras, ele sugeriu que distinguíssemos a realização do eu, em relações livres com os outros, da alienação do eu no sistema de coisas.

Esse é o núcleo da sua crítica à propriedade privada, e é uma crítica ligada tanto às alegorias e narrativas quanto aos argumentos originais de Hegel. Nos seus escritos posteriores, a crítica é transformada em teoria do “fetichismo”, de acordo com a qual as pessoas perdem sua liberdade fazendo fetiches de mercadorias. Um fetiche é algo que é animado por uma vida que lhe é transferida. O consumidor numa sociedade capitalista, segundo Marx, transfere a sua vida às mercadorias que o enfeitiçam, e então perde essa vida – tornando-se um escravo de mercadorias precisamente por ver o mercado de bens, em vez de as interações livres de pessoas, como o lugar onde seus desejos são frustrados e realizados.

É preciso notar que essas críticas da propriedade e do mercado não merecem endosso. Elas são desenvolvimentos extravagantes de uma filosofia hegeliana que, bem compreendida, aprova as livres transações em um mercado tanto quanto aprova as relações livres entre pessoas de modo geral – na verdade, ela vê uma como aplicação da outra. Antes, a idéia crucial da qual nós podemos ainda extrair alguma lição é a de Entäusserung, a realização do eu nas relações responsáveis com os outros. Esse é o cerne da contribuição da filosofia do período romântico para a compreensão da condição moderna, e é uma idéia que tem aplicação direta a problemas que nós vemos emergindo em nosso novo mundo de vida social conduzida pela Internet. No sentido em que a liberdade é um valor, a liberdade é também um artefato que ganha forma na interação mútua entre as pessoas. Essa interação mútua é o que nos eleva da condição animal à condição de pessoa, permitindo-nos tomar responsabilidade por nossas vidas e ações, avaliar nossos objetivos e  nosso caráter, e a entender, também, a natureza da realização pessoal, de modo a começar a almejá-la.

Como enfatizaram os hegelianos, esse processo de elevação do eu sobre a condição animal é decisivo para o desenvolvimento do sujeito humano como um agente autoconsciente, capaz de se entreter e de agir razoavelmente, com uma desenvolvida perspectiva de primeira pessoa e um senso de sua realidade como um sujeito dentre outros. Esse é um processo que depende de conflitos e de resoluções reais, num espaço público compartilhado, onde cada um de nós é plenamente responsável pelo que é e faz. Qualquer coisa que interfira nesse processo, minando o desenvolvimento de relações interpessoais, confiscando a responsabilidade, impedindo ou desencorajando um indivíduo a tomar decisões racionais de longo prazo, é um mal. Pode ser um mal inevitável; mas ainda é um mal, e um mal que devemos nos esforçar para abolir, se pudermos.

A televisão e a tendência para a auto-alienação

A transferência da nossa vida social para a Internet é apenas uma das maneiras de prejudicarmos, ou retrocedermos desde, esse processo de auto-realização. Muito antes que a tentação surgisse (e preparasse o caminho) houve o engodo da televisão, que corresponde exatamente à crítica hegeliana e marxista do fetiche –- uma coisa inanimada na qual investimos nossa vida, e então a perdemos. É claro que mantemos o controle final sobre a televisão: nós podemos desligá-la. Mas as pessoas não o fazem, em geral; elas permanecem fixadas na tela em muitos daqueles momentos em que poderiam estar construindo relacionamentos por meio de conversas, atividades, conflitos e projetos. A televisão, para um vasto número de pessoas, destruiu as refeições em família, o cozinhar em casa, os passatempos, o trabalho em casa, o estudo, os jogos em família. Não se trata de uma questão de “emburrecimento” do pensamento e da imaginação pela televisão, ou de manipulação dos desejos e interesses das pessoas mediante imagens obscenas. Essas características são bastante familiares e são alvos constantes de críticas desesperadas. Nem estou apenas me referindo à sua qualidade de vício -– embora a pesquisa dos psicólogos Mihaly Csikszentmihalyi e Robert Kubeyofereça apresente evidencias convincentes de que a TV é tão viciante quanto os jogos de azar e as drogas.

A preocupação é, antes, a natureza da televisão enquanto substituto dos relacionamentos humanos. Ao assistir pessoas interagindo em sitcoms, o viciado pode prescindir das suas próprias interações. Aquelas energias e interesses que de outra maneira estariam focados nos outros –- em narrar, discutir, em cantar ou jogar; em caminhar, falar, comer e agir –- são consumidos na tela, numa vida indireta que não envolve o compromisso da bagagem moral do espectador. Bagagem essa que, portanto, atrofia.

Observamos esse fenômeno em todo lugar na vida moderna, mas em nenhum lugar mais nitidamente do que entre os estudantes que chegam a nossas universidades. Estes se dividem em dois tipos: aqueles que vieram de lares encharcados de televisão e aqueles que cresceram se expressando. Os do primeiro tipo tendem a ser reticentes, inarticulados, dados a agressão quando estão sob estresse, incapazes de narrar uma história ou expressar um ponto de vista, e seriamente embaraçados quando se trata de assumir responsabilidade por uma tarefa, uma atividade ou um relacionamento. Os do segundo tipo são aqueles que levam idéias adiante, que saem com seus companheiros, que irradiam o tipo de liberdade e ousadia que torna a aprendizagem um prazer e o risco um desafio. Uma vez que estes alunos tiveram uma educação atípica, eles estão sujeitos ao escárnio. Mas eles têm uma vantagem sobre os seus contemporâneos viciados em televisão. Os últimos podem ainda se libertar do seu vício; os esportes universitários, o teatro, a música e assim por diante, podem ajudar a marginalizar a televisão da vida dos campi. Mas, em quaisquer outros espaços públicos ou semi-públicos, a televisão se tornou agora quase uma necessidade: ela pisca ao fundo, tranqüilizando aqueles que consentiram que sua vida fosse guiada por ela.

Essas críticas da televisão correspondem às criticas da natureza “fetichista” da cultura de massas feitas por Max Horkheimer, Theodor Adorno e outros membros da escola neo-marxista de Franfurt. Curiosamente, as idéias da Escola de Frankfurt foram recentemente colocadas em uso ao criticar a outra maneira com que alcançamos a estimulação imediata e sem custos: o iPod. Em seu livro de 2008, Sound MovesMichael Bull baseia-se na “teoria da cultura” de Horkheimer e Adorno para argumentar que, graças ao iPod, os espaços públicos, de diversas maneiras, deixaram de ser espaços públicos e se tornaram fragmentados e privatizados, cada pessoa retraindo-se em sua esfera inviolável e perdendo a dependência e o interesse em relação a seus companheiros. Esse processo não apenas aliena as pessoas uma das outras: permite que as pessoas mantenham o controle sobre suas sensações, e assim se isolem do mundo de oportunidades, riscos, e escolhas.

Embora haja razões para ser simpático ao argumento de Bull, assim como às críticas originais da economia de consumo feitas por Adorno e Horkheimer, suas críticas apontaram para o alvo errado: a saber, o sistema de produção capitalista e a cultura industrial emergente que faz parte deste mesmo sistema. O objetivo de Adorno e de seu empreendimento escarnecedor foi a substituição dos prazeres livres-de-risco e viciosos pelos prazeres da compreensão, da liberdade e do relacionamento. Eles podem estar certos em pensar que a cultura industrial tem uma propensão para favorecer o primeiro tipo de prazer, este tipo de prazer que é facilmente empacotado e vendido. Mas retire as maneiras saudáveis de se desenvolver através dos relacionamentos, e os prazeres viciosos automaticamente assumirão o controle, mesmo onde não haja cultura industrial para explorá-los – como nós testemunhamos na Europa comunista. E, assim como o teatro, os meios de comunicação da cultura de massas podem ser usados positivamente (por aqueles com juízo crítico) para melhorar e aprofundar nossas simpatias reais. A resposta correta para os males da televisão não é atacar aqueles que a fabricam ou a estocam entre entulhos: é concentrar-se no tipo de educação que torna possível fazer uma abordagem crítica da televisão, de modo a exigir o entendimento real e a emoção real, ao invés de kitsch, Disney, ou pornô. E a mesma coisa é verdade em relação ao iPod.

Esforçar-se no sentido de uma abordagem crítica significa tornar claras as virtudes das relações diretas em detrimento das substitutivas. Por que, como Villiers de l’Isle-Adam disse, nós vamos enfrentar as dificuldades da vida se nós podemos pedir aos nossos funcionários que o façam por nós? Por que criticamos aqueles que comem hambúrguer no sofá enquanto a vida mostra o seu drama sem sentido na tela? Torne essas questões claras, e então poderemos começar a educar as crianças na arte de desligar a televisão.

avatar pode, portanto, ser apenas o último estágio de um processo de alienação em que as pessoas aprendem a “colocar suas vidas fora de si mesmas”, a fazer de suas vidas brinquedos sobre os quais mantêm completo controle, embora de uma maneira profundamente ilusória. (Elas controlam fisicamente o que as controla psicologicamente.) E é por isso que é tão tentador olhar de volta àquelas velhas teorias hegelianas e marxistas. Pois elas tinham como premissa a idéia de que só nos tornamos livres “nos movendo para fora”, incorporando nossa liberdade nas atividades em comum e nas relações mutuamente responsáveis. E os hegelianos distinguiam a verdadeira maneira de “mover-se para fora” da falsa: aquela em que obtemos nossa liberdade dando a ela uma forma real e objetiva, como oposta àquela em que perdemos a liberdade porque a investimos em objetos que nos alienam de nossa vida interior. Essas teorias mostram como a coisa que nós (ou, pelo menos, os seguidores de Hegel) mais valorizamos na vida humana –- auto-realização numa condição de liberdade –- está separada por uma fina linha divisória da coisa que nos destrói –- auto-alienação numa condição de servidão.

Por impressionantes que sejam, no entanto, as teorias marxistas-hegelianas estão permeadas de metáfora e especulação; elas não estão ancoradas em pesquisas empíricas ou em hipóteses explicativas; sua plausibilidade depende inteiramente de pensamentos a priori sobre a natureza da liberdade e sobre a distinção metafísica entre sujeito e objeto. Para que tenham alguma utilidade para nós, precisamos traduzi-las numa linguagem mais terra-a-terra e prática –- a que nos dirá como nossas crianças deveriam ser educadas, se quisermos tirá-las da frente da tela.

Os riscos necessários da vida fora da tela

Devemos chegar a uma compreensão, então, do que está em jogo nas preocupações atuais concernentes à Internetavatares, e à vida na tela. A primeira questão em jogo é o risco. Somos seres racionais, dotados raciocínio prático e teórico. E o nosso raciocínio prático se desenvolve por meio da confrontação com o risco e a incerteza. Em grande medida, a vida na tela é livre de riscos: quando clicamos para entrar em um novo domínio, nós não arriscamos nada imediato no sentido do perigo físico, a nossa responsabilidade para com os outros e o risco de constrangimento emocional são atenuados. Isso é nitidamente claro no caso da pornografia –- e a natureza viciosa da pornografia é familiar a todos que tiveram de trabalhar no aconselhamento chegaram ao estado de dependência perturbadora. O viciado em pornografia obtém alguns dos benefícios da excitação sexual, sem quaisquer dos seus custos normais; mas os custos são parte do que significa o sexo, e quem os evita está destruindo em si mesmo a capacidade do contato sexual.

Essa libertação do risco é uma das características mais significantes do Second Life e também está presente (até certo ponto) nos sites de rede social como o Facebook. Pode-se entrar e sair, sem qualquer constrangimento, de relacionamentos realizados exclusivamente numa tela, permanecendo anônimo ou operando sob um pseudônimo, escondendo-se por trás de um avatar ou de uma fotografia falsa de si mesmo. Uma pessoa pode decidir “matar” sua identidade cibernética a qualquer momento e ela não sofrerá nada como conseqüência. Por que, então, incomodar-se de entrar no mundo dos encontros reais, quando esse substitutivo fácil está disponível? E quando o substitutivo se torna um hábito, as virtudes necessárias para o encontro real não são desenvolvidas.

Não se deve deixar de mencionar que o hábito de reduzir o risco é muito comum em nossa sociedade e, na verdade, estimulado pelo governo. Uma obsessão doentia com a saúde e uma mania insegura de segurança tiraram muitos dos riscos que gerações anteriores tomavam não apenas como algo adquirido, mas incorporavam no processo de educação moral. Desde a inserção maciça e desnecessária de parques para crianças e da obrigatoriedade de capacetes para skatistas até a criminalização do vinho em mesas de família, os fanáticos seguros-e-saudáveis nos cercaram em todos por todos os lados com uma teia de proibições, fomentando a crença de que os riscos não dizem respeito ao indivíduo, mas a uma questão de políticas públicas. As crianças não são, em geral, encorajadas a se arriscar fisicamente; e não é surpreendente que, por conseguinte, estejam relutantes em se arriscar também emocionalmente.

Mas é improvável que essa seja a fonte da prevenção de riscos nos relacionamentos humanos, ou uma indicação real da maneira certa e errada de proceder. Sem dúvida, as crianças precisam de riscos físicos e de aventura se elas forem se desenvolver como pessoas responsáveis, com sua completa quota de coragem, prudência e sabedoria prática. Mas os riscos da alma são diferentes dos riscos do corpo; você não aprende a dominá-los expondo-se a eles. Como sabemos, as crianças que são expostas à predação sexual não aprendem a lidar com ela, mas, ao contrário, tendem a adquirir o hábito de não lidar com ela: fechadas completamente a um envolvimento emocional genuíno com sua sexualidade, reduzem-na a algo puramente material, a negociam com raiva, aprendem a tratar a si mesmas como objetos e perdem a capacidade de se arriscar no amor. Grande parte da educação sexual moderna, que ensina que os únicos riscos do sexo são médicos, expõe as crianças ao mesmo tipo de dano, incentivando-as a entrar no mundo das relações sexuais sem a capacidade de dar ou receber o amor erótico, de modo que aprendam a ver o sexo como algo que existe fora do domínio dos relacionamentos duradouros –- uma fonte de prazer e não de amor.

Nas relações humanas, a prevenção de riscos significa evitar a responsabilidade, recusar ser julgado aos olhos do outro, recusar estar cara a cara com outra pessoa, a doar-se a ele ou a ela em qualquer medida e então correr o risco da rejeição. Ter responsabilidade não é algo que devemos evitar; é algo que precisamos aprender. Sem ela jamais adquirimos, ou a capacidade de amar ou a virtude da justiça, e sem ela as outras pessoas seriam meros instrumentos complexos, a serem negociados como os animais são negociados, para nossa própria vantagem e sem a abertura para a possibilidade de julgamento mútuo. A justiça é a capacidade de ver o outro como alguém que tem uma reivindicação sobre você, como um sujeito livre, assim como você é, e como alguém que exige sua responsabilidade. Para adquirir essa virtude você deve se habituar aos contatos face a face, nos quais você solicita o consentimento e a cooperação do outro ao invés de impor a ele sua vontade. O retraimento para trás da tela é uma maneira de manter o controle sobre o encontro, minimizando a necessidade de reconhecer o ponto de vista do outro. Isso implica colocar seu desejo fora de si, como um recurso da realidade virtual, deixando de se arriscar como deveria se se tratasse de um encontro verdadeiro com os outros.

Encontrar-se com outra pessoa em sua liberdade é reconhecer sua soberania e seu direito: é reconhecer que a situação que se desenrola já não está sob seu controle exclusivo, mas que você foi apanhado por ela, que esta situação o tornou real e responsável aos olhos do outro, sob as mesmas condições que fazem dele alguém real e responsável aos seus olhos.

É óbvio que, nos encontros sexuais, este processo de “sair para fora” ao encontro do outro deve ocorrer, se for um dom de amor genuíno, e se o ato sexual for algo mais do que a fricção das partes do corpo. Aprender a “sair para fora” dessa maneira é um processo moral complexo, que não pode ser simplificado sem colocar o sexo fora do processo de vínculo psicológico. E parece claro –- embora de maneira alguma seja fácil dar uma prova final sobre  –- que esse vínculo está em risco, cada vez mais, e que a causa é precisamente que o prazer sexual não vem acompanhado da justiça ou do compromisso. Sem dúvida, é plausível sugerir que, quando contamos com a tela como fórum de nosso desenvolvimento pessoal, adquirimos o hábito de nos relacionarmos uns  com os outros sem a disciplina da responsabilidade, de modo que o sexo, quando se chega a ele (como mesmo o viciado cibernético pode eventualmente chegar), será considerado da mesma forma narcisista que as excitações indiretas nas quais a relação sexual foi ensaiada. Ele ocorrerá naquele “outro lugar” indefinível desde o qual a alma decola, mesmo no momento de prazer.

Talvez possamos sobreviver num mundo de relações virtuais; mas este não é um mundo onde as crianças podem entrar facilmente, exceto como intrusos. Os avatares podem ser reproduzidos na tela: mas eles não vão preencher o mundo com crianças humanas reais. E os pais cibernéticos dessas crianças avatares, privados de tudo o que faz as pessoas crescerem como seres morais –- do risco, da vergonha, do sofrimento e do amor – serão reduzidos a meros pontos de vista, em um mundo onde eles realmente não existem.