A arte, hoje, está intoxicada de feiúra; e nós precisamos resgatá-la.
Os grandes paisagistas do Ocidente, como o pintor italiano Francesco Guardi, do século XVIII, captam os chamados da eternidade na transitoriedade.
Em qualquer período,
entre 1750 e 1930, se você pedisse a uma pessoa educada que descrevesse o
objetivo da poesia, da arte ou da música, a resposta seria "beleza".
E, se você lhe perguntasse o que isso quer dizer, você aprenderia que a beleza é um valor tão importante
quanto a bondade e a verdade -- na verdade, dificilmente poderíamos separá-la
destes atributos. Os filósofos do iluminismo viam a beleza como uma das formas
pelas quais os valores morais e espirituais permanentes adquirem forma sensível.
E nenhum pintor, músico ou escritor do período romântico negaria que a beleza
era o objetivo final da sua arte.
Em algum momento,
durante o declínio do modernismo, a beleza deixou de receber essas deferências.
A arte visava, cada vez mais, perturbar, subverter ou transgredir certezas
morais, e não premiava-se a beleza, mas a originalidade -- alcançada, contudo,
qualquer que fosse o custo moral. Na verdade, havia uma suspeita
generalizada de que a beleza se aproximava do kitsch --
algo muito doce e inofensivo para um artista moderno sério buscar. Em um ensaio
fecundo -- Avant-Garde and Kitsch, publicado em Partisan
Review, em 1939 -- o crítico Clement Greenberg traçou um contraste
rígido entre a vanguarda do seu tempo e a pintura figurativa que competia com
ela, descartando a última (e não apenas Norman Rockwell, mas grandes nomes como
Edward Hopper) como secundária e sem significado duradouro. A vanguarda, para
Greenberg, promovia a perturbação e a afronta em detrimento da tranqüilidade e
do embelezamento, e por isso mesmo é que devíamos admirá-la.
Segundo Greenberg, o
valor da arte abstrata não estava na beleza, mas na expressão. A ênfase na
expressão foi um legado do movimento romântico; mas agora essa ênfase vinha
acompanhada da convicção de que o artista é alguém que está fora da sociedade
burguesa, que é definido em oposição a ela, sendo a expressão artística também uma transgressão das normas morais compartilhadas por todos. Encontramos essa postura na arte austríaca e alemã do período entreguerras, quando é adotada abertamente -- por exemplo, nas pinturas e desenhos de Georg Grosz, na ópera
de Alban Berg Lulu (um retrato amoroso de uma mulher cujo único objetivo
discernível é o caos moral), e nos romances decadentes de Heinrich Mann. E o
culto da transgressão é um dos principais temas da literatura do período
pós-guerra na França -- desde os escritos de Georges Bataille, Jean Genet e
Jean-Paul Sartre até o vazio desolador do nouveau roman.
Claro, houve grandes
artistas que tentaram resgatar a beleza da ruptura nótavel da sociedade moderna
-- como TS Eliot tentou recompor, em Four Quartets, os fragmentos de suas
lamentações em The Waste Land. E houve outros,
particularmente nos EUA, que se recusaram a ver o sórdido e o transgressor como
a verdade sobre o mundo moderno. Para artistas como Hopper, Samuel Barber e
Wallace Stevens, a pretensa transgressão era mero sentimentalismo, uma maneira
barata de estimular a audiência e uma traição ao ofício sagrado da arte, que é
ampliar a vida como ela é e revelar a sua beleza -- como Stevens revela a
beleza de ‘An Ordinary Evening in New Haven’ e Barber revela a beleza de Knoxville:
Summer of 1915. Mas, de algum modo, aqueles que afirmavam grande
vitalidade perderam sua posição na linha de frente da cultura moderna. Tanto
para os críticos quanto para a cultura mais ampla, a busca da beleza estava
fora do empreendimento artístico. Qualidades como desorganização e imoralidade,
que antes significavam fracasso estético, tornaram-se sinais de sucesso; ao
passo que a busca da beleza fora marginalizada do verdadeiro ofício da criação
artística. Esse processo se tornou tão normal que passou a ser tratado como uma
ortodoxia crítica, o que levou o filósofo Arthur Danto a argumentar,
recentemente, que o propósito da beleza é demasiado ilusório e, de alguma
forma, contrário à missão da arte moderna. A arte adquiriu outro estatuto e
outro papel social.
A GRANDE prova dessa
mudança está nas produções de ópera, que fornecem aos habitantes da cultura
pós-moderna uma oportunidade única para se vingar da arte do passado,
escondendo sua beleza por trás de uma máscara obscena e sórdida. Todos nós
aceitamos que tal vingança se volte contra Wagner, o qual "merecia",
porquanto cresse fortemente no papel redentor da arte. Mas, hoje, ela se volta
regularmente contra as pessoas inocentes que produzem objetos belos, tão logo
um produtor pós-modernista coloque as suas mãos sobre suas obras.
Um exemplo que
particularmente me impressionou foi a produção de Die
Entführung aus dem Serail [O
Rapto do Serralho] de Mozart na Komische Oper Berlin 2004[1]. Die
Entführung conta a
história de Konstanze --
náufraga, separada de seu noivo Belmonte, levada a servir no harém de Paxá
Selim. Depois de várias intrigas, Belmonte a resgata, ajudado pela clemência do
Paxá -- que, respeitando a castidade de Konstanze e o fiel amor do casal,
recusa-se a levá-la à força. Esse enredo inverossímil permite que Mozart
expresse sua convicção iluminista na caridade como uma virtude universal,
presente tanto no império muçulmano dos turcos quanto no império cristão do
iluminista José II. Mesmo que a visão ingênua de Mozart não tenha embasamento
histórico, sua convicção no amor desinteressado é expressa e endossada pela
música, em todo lugar. Die Entführung desenvolve uma idéia moral, a melodia
compartilha da beleza dessa idéia, e a apresenta, persuasivamente, ao ouvinte.
Em sua produção de Entführung,
o diretor de teatro catalão Calixto Bieito situa a ópera em um prostíbulo de
Berlim, onde Selim é um cafetão eKonstanze uma
das prostitutas. Mesmo durante o trecho de música mais suave, casais entram no
palco copulando, estabelecendo a desordem, e cada oportunidade para atos de
violência – com ou sem clímax sexual – é aproveitada. A certa altura, uma
prostituta é torturada gratuitamente, seus mamilos são contados e sangrados de
modo realista antes de sua morte. As palavras e a música falam de amor e
compaixão, mas sua mensagem é abafada por cenas de profanação, assassinato e
sexo narcisista.
Esse exemplo mostra
algo que está presente em todos aspectos da nossa cultura contemporânea. Não é
que apenas os artistas, os diretores, os músicos e as outras pessoas ligadas às
artes estejam esquivando-se da beleza. Onde quer que a beleza esteja esperando
por nós, surge um desejo de interceptar o seu apelo, para sufocá-lo com cenas
de destruição. Eis porque muitas obras de arte contemporâneas fiam-se no
escândalo que causam à nossa falta de fé na natureza humana – tal como o
crucifixo imerso em urina de Andres Serrano. Eis porque são abundantes as cenas
de canibalismo, desmembramento e sofrimento sem sentido, no cinema
contemporâneo, onde diretores como Quentin Tarantino têm pouco mais que isso em
seu repertório. Daí porque a música popular foi invadida pelo rap, cujas
palavras e ritmos falam da violência incessante, e rejeitam a melodia, a
harmonia ou qualquer outro expediente que faça uma ponte com o mundo antigo das
canções. Daí a existência videoclipes, que se tornaram, por si mesmos, uma
forma de arte e que, com freqüência, têm a finalidade de concentrar, no
intervalo de tempo de uma canção popular, algum novo relato surpreendente de
caos moral.
Esses fenômenos
registram um hábito de dessacralização em que a vida não é celebrada, mas
visada pela arte. Os artistas, hoje, podem fazer suas reputações produzindo um
quadro original em que exibem o rosto humano e lhe enchem de merda. O que fazer
diante disso, e como encontramos o caminho de volta à experiência pela qual as
pessoas tanto anseiam, que é a visão da beleza? Falar de uma "visão da
beleza" pode parecer um pouco sentimental. Não me refiro, aqui, a algo
adocicado ou à vida humana estampada em cartões de natal, mas, pelo contrário,
a formas elementares através das quais os ideais e as boas maneiras entram em
nosso mundo cotidiano e se dão a conhecer, como o amor e a caridade dão-se a
conhecer na música de Mozart. Em nosso mundo há uma grande fome por beleza, uma
fome que a nossa arte popular não consegue identificar e que a nossa arte séria
muitas vezes desafia.
EU USEI a palavra
"profanação" para descrever a postura que nos é transmitida pela
produção de Bieito de Die Entführun e pelos esforços capengas de
Serrano para fazer algo significativo. O que exatamente está implicado nessa
palavra? Ela está ligada, etimológica e semanticamente, com sacrilégio, e,
portanto, com as ideias de santidade e sagrado. Profanar algo é degradar o que,
de outra maneira, poderia estar colocado à parte, na esfera dos objetos
sagrados. Nós podemos profanar uma igreja, um cemitério, um túmulo; e também
uma imagem sagrada, um livro ou uma cerimônia sagrados. Podemos profanar um
cadáver, uma imagem querida, até mesmo um ser humano vivo – na medida em que
essas coisas contenham (e, de fato, contêm) o arroubo de uma santidade
original. O receio de profanar é um elemento crucial em todas as religiões. Na
verdade, é isso o que a palavra religio significa, originariamente: um
culto ou uma cerimônia destinada a proteger um local sagrado do sacrilégio.
A ideia de sacralidade
foi eclipsada, no século XVIII, enquanto a religião organizada e as solenidades
reais perdiam sua autoridade, o espírito democrático questionava as
instituições que nos foram legadas por nossos antepassados, e a ideia
disseminada era a de que o homem, e não Deus, é quem cria a leis do mundo
humano. Para os pensadores do iluminismo, parecia quase uma superstição
acreditar que os artefatos, as construções, os lugares e as cerimônias pudessem
encerrar um caráter sagrado, pois lhes pareciam simples produtos do desígnio
humano. A ideia de que a divindade se revela em nosso mundo e solicita a nossa
adoração, parecia tanto inverossímil em si mesma quanto incompatível com a
ciência.
Ao mesmo tempo,
filósofos como Shaftesbury, Burke, Adam Smith e Kant reconheceram que nós não
observamos o mundo apenas com os olhos da ciência. Existe outra atitude – que
não é a da inquirição científica, mas a da contemplação desinteressada – em que
observamos o nosso mundo em busca de seu significado. Quando adotamos essa
postura, nós colocamos os nossos interesses de lado; já não estamos ocupados
com os objetivos e os projetos que nos impulsionam incessantemente; não estamos
mais empenhados em explicar as coisas ou em aumentar as nossas capacidades.
Estamos deixando que o mundo se faça presente e estamos nos sentindo
confortáveis com a sua presença. Tal é a origem da experiência da beleza. Pode
ser que essa experiência seja incompatível com a nossa busca cotidiana por
poder e conhecimento. Pode ser que seja impossível absorvê-la no uso diário de
nossas faculdades. Mas é uma experiência que existe de modo auto-evidente e que
é muito valorizada por quem passa por ela.
QUANDO OCORRE esse tipo
de experiência? O que ela significa? Eis um exemplo: imagine que você está
voltando para casa sob a chuva e sua mente se ocupa do trabalho. As ruas e as
casas passam despercebidas; as pessoas também passam por você; nada acomete os
seus pensamentos, exceto seus interesses e ansiedades. Então, de repente, o sol
surge no meio das nuvens, e um raio de luz pousa, vibrante, sobre um velho muro
de pedras ao seu lado. Você olha para o céu, onde as nuvens estão se separando,
e um pássaro irrompe a cantar no jardim, atrás do muro. Seu peito se enche de
alegria e seus pensamentos egoístas são dissipados. O mundo está na sua frente
e você se contenta por simplesmente olhá-lo e aceitá-lo como tal.
Talvez essas
experiências sejam mais raras hoje do que no século XVIII, quando os poetas e
filósofos as enxergavam como um novo caminho para a religião. A pressa e a
desordem da vida moderna, as formas alienantes da arquitetura moderna, o ruído
e a poluição da indústria moderna – esses fenômenos tornaram o simples encontro
com a beleza algo mais raro, mais frágil e imprevisível, para nós. Ainda assim,
todos nós sabemos o que é ser transportado, subitamente, pelos objetos que
vemos, desde o mundo ordinário de nossos apetites até uma esfera iluminada de
contemplação. Essa experiência acontece muitas vezes durante a infância, ainda
que raramente a interpretemos, naquela altura. Ela acontece durante a
adolescência, quando se presta a nossos anseios eróticos. E acontece de maneira
mais limitada na vida adulta: ela molda secretamente os nossos projetos de
vida, fornece-nos uma imagem de harmonia que buscamos por meio das
festividades, da construção do lar e dos nossos sonhos pessoais.
Eis outro exemplo:
trata-se de uma ocasião especial, em que a família se reúne para um jantar
formal. Você arruma a mesa com um tecido bordado limpo, arranja os pratos, os
copos, algumas garrafas de água e vinho, e coloca pães numa cesta. Você o faz
com amor, deleitando-se com a aparência, esforçando-se para produzir um efeito
de limpeza, simplicidade, simetria e calor. A mesa se tornou um símbolo do
encontro familiar, dos braços estendidos da mãe universal que convida seus
filhos para entrar. Toda essa riqueza de significado e de bom ânimo está
encerrada na aparência da mesa. Esta é, pois, outra experiência da beleza que
encontramos, de um modo ou de outro, todos os dias. Nós somos criaturas
necessitadas, e a nossa maior necessidade é a de ter um lar – um lugar onde
permanecemos, onde encontramos proteção e amor. Nós formamos um lar expressando
a nossa própria pertença, não sozinhos, mas em conjunto. Todas as tentativas de
conferir boa aparência ao nosso ambiente – pela decoração, pelo arranjo, pela
criatividade – são tentativas de dar boas-vindas a nós mesmos e àqueles que amamos.
Esse segundo exemplo
sugere que a necessidade de beleza não é apenas um acréscimo supérfluo à gama
de apetites humanos. Não podemos, sem ela, nos realizar como pessoas. É uma
necessidade que surge da nossa própria condição metafísica de indivíduos
livres, em que buscamos o nosso lugar num mundo objetivo. Nós podemos vagar por
este mundo, alienados, ressentidos, cheios de suspeita e desconfiança. Ou
podemos encontrar, aqui, o nosso lar, e obter repouso ao estar em harmonia com
os outros e conosco mesmos. A experiência da beleza nos leva a esse segundo
caminho: ela nos diz que estamos em casa no mundo, que o mundo já está
enquadrado em nossas percepções como um lugar apropriado para a vida de seres
como nós.
Observe qualquer
pintura de um dos grandes pintores paisagistas – Pousssin, Guardi, Turner,
Corot, Cézanne – e você verá a ideia da beleza celebrada e fixada em imagens. A
finalidade da arte da pintura de paisagens, que surgiu no século XVII e perdura
até os dias de hoje, é conferir à natureza um aspecto moral e mostrar o domínio
da liberdade humana dentro da ordem geral das coisas. Não é que os pintores
paisagistas fechem seus olhos para o sofrimento ou para a vastidão e para o
caráter ameaçador do universo, no qual ocupamos um canto tão pequeno. Longe
disso. Os pintores paisagistas nos mostram a morte e a decadência no próprio
âmago das coisas: a luz de suas colinas é uma luz enfraquecida; as paredes de
estuque das casas de Guardi são mosqueadas e estão se desfazendo. Mas suas
imagens apontam para a alegria que está incipiente no declínio e para a
eternidade implícita na transitoriedade. São imagens de um lar.
Não é de espantar que a
ideia da beleza tenha deixado os filósofos perplexos. A experiência da beleza é
tão viva, tão imediata, tão pessoal, que dificilmente pode ser vista como parte
da ordem natural, tal como analisada pela ciência. Mas a beleza se faz cintilar
sobre nós desde os objetos mais comuns. Ora, ela é uma característica do mundo
ou uma invenção da imaginação? Ela nos transmite algo de real e verdadeiro e
pode ser reconhecida mediante uma experiência tão simples? Ou é apenas uma
intensa sensação de momento, sem qualquer significação para além do deleite
pessoal de quem a experimenta? Tais questões são de grande urgência para nós,
pois vivemos numa época em que a beleza está em eclipse: uma sombra negra de
escárnio e alienação se arrasta por toda a superfície (outrora brilhante) de
nosso mundo, como a sombra da terra cobre a lua. Quando procuramos a beleza,
freqüentemente encontramos escuridão e dessacralização.
O hábito atual de
profanar a beleza sugere que as pessoas estão tão conscientes, hoje, quanto
sempre estiveram, da presença de objetos sagrados. A dessacralização é uma
espécie de defesa contra o sagrado, uma tentativa de destruir o seu apelo. Na
presença de objetos sagrados, as nossas vidas são julgadas, e, para escapar ao
seu julgamento, nós destruímos as coisas que parecem nos acusar.
Os cristãos herdaram de
Santo Agostinho e Platão a visão deste mundo transitório como um símbolo de
outra ordem imutável. Eles entendem o sagrado como uma revelação, no aqui e
agora, do sentido eterno do nosso ser. Mas a experiência do sagrado não está
confinada aos cristãos. De acordo com muitos filósofos e antropólogos, ela é um
traço humano universal. A vida da maior parte das pessoas é ditada por
objetivos transitórios: a rotina diária é constituída de motivações econômicas,
de busca por conforto e poder imediatos, da necessidade de lazer e prazer.
Quase nada, aí, é digno de ser lembrado ou nos toca profundamente. De vez em
quando, porém, somos retirados do nosso estado de complacência e nos sentimos
na presença de algo muito mais importante do que os nossos interesses e desejos
momentâneos. Sentimos que uma realidade preciosa e misteriosa nos atinge com um
clamor que, de alguma maneira, não é deste mundo. O mesmo acontece na presença
da morte, especialmente na morte de alguém que amamos. Nós olhamos, admirados,
o corpo humano do qual a vida se esvaiu. Ele já não é uma pessoa, mas os seus
"restos mortais". E esse pensamento nos preenche com um senso de
estranheza. Ficamos relutantes em tocar o corpo morto; de certo modo, nós o
enxergamos como algo que, propriamente, não faz parte deste mundo, quase como
um visitante de outra esfera.
Essa experiência, que é
um paradigma do nosso encontro com o sagrado, exige uma espécie de
reconhecimento cerimonial da nossa parte. O corpo sem vida é objeto de rituais
e de atos de purificação, concebidos não apenas para enviar o seu extinto dono,
feliz, para a vida após a morte – pois essas práticas são realizadas mesmo por
aqueles que não acreditam em vida após a morte –, mas para superar o espanto e
o assombro (atributos sobrenaturais) diante da forma humana morta. O corpo é
recuperado por este mundo através de rituais que reconhecem também que ele é
uma realidade à parte. Dito de outro modo: os rituais consagram o corpo e,
assim, o purificam do seu estado de putrefação. Por esse motivo é que o corpo
pode ser profanado – e este é, sem dúvida, um dos principais atos de
profanação, ao qual as pessoas se sentiram tentadas desde os tempos imemoriais,
como quando Aquiles, triunfante, arrasta o corpo de Heitor ao redor das
muralhas de Tróia.
Há outras ocasiões em
que a presença de um apelo transcendente também nos arrasta para fora das
nossas preocupações cotidianas. Por exemplo, na experiência de estar
apaixonado. Também essa experiência é uma necessidade humana universal que nos
causa estranhamento. O rosto e o corpo da pessoa amada estão imbuídos de uma
vivacidade intensa. Mas, sob um aspecto fundamental, eles são como o corpo de
um morto: parecem não pertencer ao mundo empírico. Aquele que é amado olha para
quem o ama como Beatriz olhava para Dante: de um patamar que transcende o fluxo
das coisas temporais. O objeto de amor exige que o estimemos e que nos
aproximemos dele com uma reverência quase ritualística. E através dos olhos,
lábios e palavras há uma espécie de plenitude do espírito que tudo renova.
Os poetas gastaram
milhares de palavras para descrever essa experiência que palavra alguma parece
exprimir totalmente. É uma experiência sustentou o senso do sagrado ao longo
dos séculos, e fez com que pessoas tão diferentes, como Platão e Calvino,
Virgílio e Baudelaire, se lembrassem de que o desejo sexual não é o simples
apetite que observamos nos animais, mas a matéria prima de um desejo que não
pode ser satisfeito de modo fácil ou mundano, e que exige de nós – nada mais,
nada menos – uma mudança de vida.
BOA PARTE da feiúra que
é cultivada em nosso mundo, hoje, remonta às duas experiências que eu
assinalei. O corpo nos estertores da morte; o corpo nos estertores do sexo – os
dois podem nos fascinar, sem dificuldades. Somos fascinados pela
dessacralização da forma humana, quando nos mostram o corpo humano como um mero
objeto entre outros, o espírito humano ofuscado e ineficaz, o homem como um ser derrotado por forças externas, e não como
um sujeito livre limitado pela lei moral. E a arte dos nossos tempos parece se
concentrar sobre este tipo de coisa, oferecendo-nos, não só pornografia sexual,
mas uma pornografia da violência, que reduz o ser humano a um pedaço de carne
que padece, indefeso, de forma lamentável e repugnante.
Todos nós temos um
desejo de escapar das imposições de uma existência responsável, em que tratamos
uns aos outros como pessoas dignas de reverência e respeito. Todos nós somos
tentados pela ideia da carne e pelo desejo de transformar o ser humano em pura
matéria – um autômato que obedece a desejos mecânicos. Para nos render a essa
tentação, no entanto, precisamos, primeiro, remover o seu principal obstáculo:
a natureza consagrada da forma humana. Precisamos macular as experiências –
como as da morte e do sexo – que de outro modo nos conduziriam para longe
dessas tentações, em direção de uma vida mais elevada e constituída de
sacrifícios. Essa dessacralização consciente prejudica também o amor – é uma
tentativa de refazer o mundo como se o amor já não existisse nele. E esta é,
sem dúvida, a característica mais importante da cultura pós-moderna: uma
cultura sem amor, determinada a retratar o mundo humano como indigno de ser
amado. O diretor de teatro moderno que despoja violentamente as obras de Mozart
está tentando destruir o amor que está no cerne destas obras, para confirmar a
sua visão do mundo como um lugar onde só o prazer e a dor são reais.
Isso nos sugere uma
solução simples: resistir à tentação. Em vez de profanar a forma humana,
devemos aprender a reverenciá-la. Pois não ganhamos nada, absolutamente, com os
insultos lançados sobre a beleza por aqueles que – como Calixto Bieito – não
agüentam encará-la de frente. Claro, podemos neutralizar os ideias elevados de
Mozart colocando a sua música em segundo plano, de modo que se torne o mero
acompanhamento de um carnaval desumano, repleto de sexo e morte. Mas o que
apreendemos com isso? O que ganhamos, em termos de crescimento emocional, espiritual,
intelectual e moral? Nada, exceto ansiedade. Devíamos apreender uma lição com
esse tipo de dessacralização: ao tentar nos mostrar que os nossos ideais
humanos não têm valor, ela própria se mostra sem valor. E quando algo se
mostra sem valor, é hora de jogá-lo fora.
É CLARO, portanto, que
a cultura da transgressão jamais alcança resultado algum, exceto este: a perda
da beleza como um valor e um fim. Mas por que a beleza é um valor? Trata-se,
aqui, de uma visão antiga segundo a qual a verdade, a bondade e a beleza não
podem ser antagônicas, em última análise. Talvez a beleza tenha se degradado em kitsch precisamente porque, no
pós-modernismo, perdeu-se a noção de veracidade e, conseqüentemente, de direção
moral. Essa é a mensagem que nos transmitem os primeiros modernistas – Eliot,
Barber e Stevens – e que precisamos ouvir.
Para oferecer uma
resposta satisfatória ao hábito de dessacralização, precisamos descobrir as
afirmações e as verdades vitais sem as quais as belezas artísticas não podem
ser realizadas. O que não é uma tarefa fácil. Se observarmos os verdadeiros
defensores da beleza em nossos tempos – penso em compositores como Henri
Dutilleux e Olivier Messiaen, em poetas como Derek Walcott e Charles Tomlinson,
em prosadores como Italo Calvino e Aleksandr Solzhenitsyn – impressionamo-nos,
de imediato, diante da imensidão do trabalho árduo, do estudo solitário e da
atenção aos detalhes que caracterizam seu ofício. Na arte, a beleza tem de ser conquistada, mas o trabalho se torna mais
difícil à medida que o puro ruído de dessacralização – ampliado agora pela Internet – abafa a voz silenciosa que murmura
no âmago das coisas.
Uma resposta possível é
olhar para a beleza em suas formas mais cotidianas – a beleza das ruas
residenciais, dos rostos alegres, dos objetos naturais e das paisagens
agradáveis. É possível, também, poluir essas coisas, e este é o propósito do
artista de segunda categoria ao atrair nossa atenção para esse caminho – a via
negativa da
dessacralização. Mas é possível, também, retornar aos objetos mais simples como
faziam Wallace Stevens e Samuel Barber – mostrando que nos sentimos
familiarizados com eles e que eles ampliam e justificam a nossa existência.
Esse é um caminho que nos foi
aberto pelos primeiros modernistas – a via positiva da beleza. E não há razão
alguma para pensar que devamos abandoná-lo.
[1] Ver "The Abdution of Opera",
http://www.city-journal.org/html/17_3_urbanities-regietheater.html