quinta-feira, 3 de abril de 2014

Beleza e Dessacralização, Roger Scruton

A arte, hoje, está intoxicada de feiúra; e nós precisamos resgatá-la. 


Os grandes paisagistas do Ocidente, como o pintor italiano Francesco Guardi, do século XVIII, captam os chamados da eternidade na transitoriedade.


Em qualquer período, entre 1750 e 1930, se você pedisse a uma pessoa educada que descrevesse o objetivo da poesia, da arte ou da música, a resposta seria "beleza". E, se você lhe perguntasse o que isso quer dizer, você aprenderia que a beleza é um valor tão importante quanto a bondade e a verdade -- na verdade, dificilmente poderíamos separá-la destes atributos. Os filósofos do iluminismo viam a beleza como uma das formas pelas quais os valores morais e espirituais permanentes adquirem forma sensível. E nenhum pintor, músico ou escritor do período romântico negaria que a beleza era o objetivo final da sua arte.

Em algum momento, durante o declínio do modernismo, a beleza deixou de receber essas deferências. A arte visava, cada vez mais, perturbar, subverter ou transgredir certezas morais, e não premiava-se a beleza, mas a originalidade -- alcançada, contudo, qualquer que fosse o custo moral. Na verdade, havia uma suspeita generalizada de que a beleza se aproximava do kitsch -- algo muito doce e inofensivo para um artista moderno sério buscar. Em um ensaio fecundo -- Avant-Garde and Kitsch, publicado em Partisan Review, em 1939 -- o crítico Clement Greenberg traçou um contraste rígido entre a vanguarda do seu tempo e a pintura figurativa que competia com ela, descartando a última (e não apenas Norman Rockwell, mas grandes nomes como Edward Hopper) como secundária e sem significado duradouro. A vanguarda, para Greenberg, promovia a perturbação e a afronta em detrimento da tranqüilidade e do embelezamento, e por isso mesmo é que devíamos admirá-la.

Segundo Greenberg, o valor da arte abstrata não estava na beleza, mas na expressão. A ênfase na expressão foi um legado do movimento romântico; mas agora essa ênfase vinha acompanhada da convicção de que o artista é alguém que está fora da sociedade burguesa, que é definido em oposição a ela, sendo a expressão artística também uma transgressão das normas morais compartilhadas por todos. Encontramos essa postura na arte austríaca e alemã do período entreguerras, quando é adotada abertamente  -- por exemplo, nas pinturas e desenhos de Georg Grosz, na ópera de Alban Berg Lulu (um retrato amoroso de uma mulher cujo único objetivo discernível é o caos moral), e nos romances decadentes de Heinrich Mann. E o culto da transgressão é um dos principais temas da literatura do período pós-guerra na França -- desde os escritos de Georges Bataille, Jean Genet e Jean-Paul Sartre até o vazio desolador do nouveau roman.


Claro, houve grandes artistas que tentaram resgatar a beleza da ruptura nótavel da sociedade moderna -- como TS Eliot tentou recompor, em Four Quartets, os fragmentos de suas lamentações em The Waste Land. E houve outros, particularmente nos EUA, que se recusaram a ver o sórdido e o transgressor como a verdade sobre o mundo moderno. Para artistas como Hopper, Samuel Barber e Wallace Stevens, a pretensa transgressão era mero sentimentalismo, uma maneira barata de estimular a audiência e uma traição ao ofício sagrado da arte, que é ampliar a vida como ela é e revelar a sua beleza -- como Stevens revela a beleza de ‘An Ordinary Evening in New Haven’ e Barber revela a beleza de Knoxville: Summer of 1915. Mas, de algum modo, aqueles que afirmavam grande vitalidade perderam sua posição na linha de frente da cultura moderna. Tanto para os críticos quanto para a cultura mais ampla, a busca da beleza estava fora do empreendimento artístico. Qualidades como desorganização e imoralidade, que antes significavam fracasso estético, tornaram-se sinais de sucesso; ao passo que a busca da beleza fora marginalizada do verdadeiro ofício da criação artística. Esse processo se tornou tão normal que passou a ser tratado como uma ortodoxia crítica, o que levou o filósofo Arthur Danto a argumentar, recentemente, que o propósito da beleza é demasiado ilusório e, de alguma forma, contrário à missão da arte moderna. A arte adquiriu outro estatuto e outro papel social.   

A GRANDE prova dessa mudança está nas produções de ópera, que fornecem aos habitantes da cultura pós-moderna uma oportunidade única para se vingar da arte do passado, escondendo sua beleza por trás de uma máscara obscena e sórdida. Todos nós aceitamos que tal vingança se volte contra Wagner, o qual "merecia", porquanto cresse fortemente no papel redentor da arte. Mas, hoje, ela se volta regularmente contra as pessoas inocentes que produzem objetos belos, tão logo um produtor pós-modernista coloque as suas mãos sobre suas obras. 

Um exemplo que particularmente me impressionou foi a produção de Die Entführung aus dem Serail [O Rapto do Serralho] de Mozart na Komische Oper Berlin 2004[1]. Die Entführung conta a história de Konstanze -- náufraga, separada de seu noivo Belmonte, levada a servir no harém de Paxá Selim. Depois de várias intrigas, Belmonte a resgata, ajudado pela clemência do Paxá -- que, respeitando a castidade de Konstanze e o fiel amor do casal, recusa-se a levá-la à força. Esse enredo inverossímil permite que Mozart expresse sua convicção iluminista na caridade como uma virtude universal, presente tanto no império muçulmano dos turcos quanto no império cristão do iluminista José II. Mesmo que a visão ingênua de Mozart não tenha embasamento histórico, sua convicção no amor desinteressado é expressa e endossada pela música, em todo lugar. Die Entführung desenvolve uma idéia moral, a melodia compartilha da beleza dessa idéia, e a apresenta, persuasivamente, ao ouvinte.


Em sua produção de Entführung, o diretor de teatro catalão Calixto Bieito situa a ópera em um prostíbulo de Berlim, onde Selim é um cafetão eKonstanze uma das prostitutas. Mesmo durante o trecho de música mais suave, casais entram no palco copulando, estabelecendo a desordem, e cada oportunidade para atos de violência – com ou sem clímax sexual – é aproveitada. A certa altura, uma prostituta é torturada gratuitamente, seus mamilos são contados e sangrados de modo realista antes de sua morte. As palavras e a música falam de amor e compaixão, mas sua mensagem é abafada por cenas de profanação, assassinato e sexo narcisista.


Esse exemplo mostra algo que está presente em todos aspectos da nossa cultura contemporânea. Não é que apenas os artistas, os diretores, os músicos e as outras pessoas ligadas às artes estejam esquivando-se da beleza. Onde quer que a beleza esteja esperando por nós, surge um desejo de interceptar o seu apelo, para sufocá-lo com cenas de destruição. Eis porque muitas obras de arte contemporâneas fiam-se no escândalo que causam à nossa falta de fé na natureza humana – tal como o crucifixo imerso em urina de Andres Serrano. Eis porque são abundantes as cenas de canibalismo, desmembramento e sofrimento sem sentido, no cinema contemporâneo, onde diretores como Quentin Tarantino têm pouco mais que isso em seu repertório. Daí porque a música popular foi invadida pelo rap, cujas palavras e ritmos falam da violência incessante, e rejeitam a melodia, a harmonia ou qualquer outro expediente que faça uma ponte com o mundo antigo das canções. Daí a existência videoclipes, que se tornaram, por si mesmos, uma forma de arte e que, com freqüência, têm a finalidade de concentrar, no intervalo de tempo de uma canção popular, algum novo relato surpreendente de caos moral.


Esses fenômenos registram um hábito de dessacralização em que a vida não é celebrada, mas visada pela arte. Os artistas, hoje, podem fazer suas reputações produzindo um quadro original em que exibem o rosto humano e lhe enchem de merda. O que fazer diante disso, e como encontramos o caminho de volta à experiência pela qual as pessoas tanto anseiam, que é a visão da beleza? Falar de uma "visão da beleza" pode parecer um pouco sentimental. Não me refiro, aqui, a algo adocicado ou à vida humana estampada em cartões de natal, mas, pelo contrário, a formas elementares através das quais os ideais e as boas maneiras entram em nosso mundo cotidiano e se dão a conhecer, como o amor e a caridade dão-se a conhecer na música de Mozart. Em nosso mundo há uma grande fome por beleza, uma fome que a nossa arte popular não consegue identificar e que a nossa arte séria muitas vezes desafia.


EU USEI a palavra "profanação" para descrever a postura que nos é transmitida pela produção de Bieito de Die Entführun e pelos esforços capengas de Serrano para fazer algo significativo. O que exatamente está implicado nessa palavra? Ela está ligada, etimológica e semanticamente, com sacrilégio, e, portanto, com as ideias de santidade e sagrado. Profanar algo é degradar o que, de outra maneira, poderia estar colocado à parte, na esfera dos objetos sagrados. Nós podemos profanar uma igreja, um cemitério, um túmulo; e também uma imagem sagrada, um livro ou uma cerimônia sagrados. Podemos profanar um cadáver, uma imagem querida, até mesmo um ser humano vivo – na medida em que essas coisas contenham (e, de fato, contêm) o arroubo de uma santidade original. O receio de profanar é um elemento crucial em todas as religiões. Na verdade, é isso o que a palavra religio significa, originariamente: um culto ou uma cerimônia destinada a proteger um local sagrado do sacrilégio.


A ideia de sacralidade foi eclipsada, no século XVIII, enquanto a religião organizada e as solenidades reais perdiam sua autoridade, o espírito democrático questionava as instituições que nos foram legadas por nossos antepassados, e a ideia disseminada era a de que o homem, e não Deus, é quem cria a leis do mundo humano. Para os pensadores do iluminismo, parecia quase uma superstição acreditar que os artefatos, as construções, os lugares e as cerimônias pudessem encerrar um caráter sagrado, pois lhes pareciam simples produtos do desígnio humano. A ideia de que a divindade se revela em nosso mundo e solicita a nossa adoração, parecia tanto inverossímil em si mesma quanto incompatível com a ciência.


Ao mesmo tempo, filósofos como Shaftesbury, Burke, Adam Smith e Kant reconheceram que nós não observamos o mundo apenas com os olhos da ciência. Existe outra atitude – que não é a da inquirição científica, mas a da contemplação desinteressada – em que observamos o nosso mundo em busca de seu significado. Quando adotamos essa postura, nós colocamos os nossos interesses de lado; já não estamos ocupados com os objetivos e os projetos que nos impulsionam incessantemente; não estamos mais empenhados em explicar as coisas ou em aumentar as nossas capacidades. Estamos deixando que o mundo se faça presente e estamos nos sentindo confortáveis com a sua presença. Tal é a origem da experiência da beleza. Pode ser que essa experiência seja incompatível com a nossa busca cotidiana por poder e conhecimento. Pode ser que seja impossível absorvê-la no uso diário de nossas faculdades. Mas é uma experiência que existe de modo auto-evidente e que é muito valorizada por quem passa por ela.


QUANDO OCORRE esse tipo de experiência? O que ela significa? Eis um exemplo: imagine que você está voltando para casa sob a chuva e sua mente se ocupa do trabalho. As ruas e as casas passam despercebidas; as pessoas também passam por você; nada acomete os seus pensamentos, exceto seus interesses e ansiedades. Então, de repente, o sol surge no meio das nuvens, e um raio de luz pousa, vibrante, sobre um velho muro de pedras ao seu lado. Você olha para o céu, onde as nuvens estão se separando, e um pássaro irrompe a cantar no jardim, atrás do muro. Seu peito se enche de alegria e seus pensamentos egoístas são dissipados. O mundo está na sua frente e você se contenta por simplesmente olhá-lo e aceitá-lo como tal.

Talvez essas experiências sejam mais raras hoje do que no século XVIII, quando os poetas e filósofos as enxergavam como um novo caminho para a religião. A pressa e a desordem da vida moderna, as formas alienantes da arquitetura moderna, o ruído e a poluição da indústria moderna – esses fenômenos tornaram o simples encontro com a beleza algo mais raro, mais frágil e imprevisível, para nós. Ainda assim, todos nós sabemos o que é ser transportado, subitamente, pelos objetos que vemos, desde o mundo ordinário de nossos apetites até uma esfera iluminada de contemplação. Essa experiência acontece muitas vezes durante a infância, ainda que raramente a interpretemos, naquela altura. Ela acontece durante a adolescência, quando se presta a nossos anseios eróticos. E acontece de maneira mais limitada na vida adulta: ela molda secretamente os nossos projetos de vida, fornece-nos uma imagem de harmonia que buscamos por meio das festividades, da construção do lar e dos nossos sonhos pessoais.


Eis outro exemplo: trata-se de uma ocasião especial, em que a família se reúne para um jantar formal. Você arruma a mesa com um tecido bordado limpo, arranja os pratos, os copos, algumas garrafas de água e vinho, e coloca pães numa cesta. Você o faz com amor, deleitando-se com a aparência, esforçando-se para produzir um efeito de limpeza, simplicidade, simetria e calor. A mesa se tornou um símbolo do encontro familiar, dos braços estendidos da mãe universal que convida seus filhos para entrar. Toda essa riqueza de significado e de bom ânimo está encerrada na aparência da mesa. Esta é, pois, outra experiência da beleza que encontramos, de um modo ou de outro, todos os dias. Nós somos criaturas necessitadas, e a nossa maior necessidade é a de ter um lar – um lugar onde permanecemos, onde encontramos proteção e amor. Nós formamos um lar expressando a nossa própria pertença, não sozinhos, mas em conjunto. Todas as tentativas de conferir boa aparência ao nosso ambiente – pela decoração, pelo arranjo, pela criatividade – são tentativas de dar boas-vindas a nós mesmos e àqueles que amamos.


Esse segundo exemplo sugere que a necessidade de beleza não é apenas um acréscimo supérfluo à gama de apetites humanos. Não podemos, sem ela, nos realizar como pessoas. É uma necessidade que surge da nossa própria condição metafísica de indivíduos livres, em que buscamos o nosso lugar num mundo objetivo. Nós podemos vagar por este mundo, alienados, ressentidos, cheios de suspeita e desconfiança. Ou podemos encontrar, aqui, o nosso lar, e obter repouso ao estar em harmonia com os outros e conosco mesmos. A experiência da beleza nos leva a esse segundo caminho: ela nos diz que estamos em casa no mundo, que o mundo já está enquadrado em nossas percepções como um lugar apropriado para a vida de seres como nós.


Observe qualquer pintura de um dos grandes pintores paisagistas – Pousssin, Guardi, Turner, Corot, Cézanne – e você verá a ideia da beleza celebrada e fixada em imagens. A finalidade da arte da pintura de paisagens, que surgiu no século XVII e perdura até os dias de hoje, é conferir à natureza um aspecto moral e mostrar o domínio da liberdade humana dentro da ordem geral das coisas. Não é que os pintores paisagistas fechem seus olhos para o sofrimento ou para a vastidão e para o caráter ameaçador do universo, no qual ocupamos um canto tão pequeno. Longe disso. Os pintores paisagistas nos mostram a morte e a decadência no próprio âmago das coisas: a luz de suas colinas é uma luz enfraquecida; as paredes de estuque das casas de Guardi são mosqueadas e estão se desfazendo. Mas suas imagens apontam para a alegria que está incipiente no declínio e para a eternidade implícita na transitoriedade. São imagens de um lar.



Não é de espantar que a ideia da beleza tenha deixado os filósofos perplexos. A experiência da beleza é tão viva, tão imediata, tão pessoal, que dificilmente pode ser vista como parte da ordem natural, tal como analisada pela ciência. Mas a beleza se faz cintilar sobre nós desde os objetos mais comuns. Ora, ela é uma característica do mundo ou uma invenção da imaginação? Ela nos transmite algo de real e verdadeiro e pode ser reconhecida mediante uma experiência tão simples? Ou é apenas uma intensa sensação de momento, sem qualquer significação para além do deleite pessoal de quem a experimenta? Tais questões são de grande urgência para nós, pois vivemos numa época em que a beleza está em eclipse: uma sombra negra de escárnio e alienação se arrasta por toda a superfície (outrora brilhante) de nosso mundo, como a sombra da terra cobre a lua. Quando procuramos a beleza, freqüentemente encontramos escuridão e dessacralização.

Os artistas modernos como Otto Dix  frequentemente chafurdam-se na baixaria e na ausência de amor.

O hábito atual de profanar a beleza sugere que as pessoas estão tão conscientes, hoje, quanto sempre estiveram, da presença de objetos sagrados. A dessacralização é uma espécie de defesa contra o sagrado, uma tentativa de destruir o seu apelo. Na presença de objetos sagrados, as nossas vidas são julgadas, e, para escapar ao seu julgamento, nós destruímos as coisas que parecem nos acusar.


Os cristãos herdaram de Santo Agostinho e Platão a visão deste mundo transitório como um símbolo de outra ordem imutável. Eles entendem o sagrado como uma revelação, no aqui e agora, do sentido eterno do nosso ser. Mas a experiência do sagrado não está confinada aos cristãos. De acordo com muitos filósofos e antropólogos, ela é um traço humano universal. A vida da maior parte das pessoas é ditada por objetivos transitórios: a rotina diária é constituída de motivações econômicas, de busca por conforto e poder imediatos, da necessidade de lazer e prazer. Quase nada, aí, é digno de ser lembrado ou nos toca profundamente. De vez em quando, porém, somos retirados do nosso estado de complacência e nos sentimos na presença de algo muito mais importante do que os nossos interesses e desejos momentâneos. Sentimos que uma realidade preciosa e misteriosa nos atinge com um clamor que, de alguma maneira, não é deste mundo. O mesmo acontece na presença da morte, especialmente na morte de alguém que amamos. Nós olhamos, admirados, o corpo humano do qual a vida se esvaiu. Ele já não é uma pessoa, mas os seus "restos mortais". E esse pensamento nos preenche com um senso de estranheza. Ficamos relutantes em tocar o corpo morto; de certo modo, nós o enxergamos como algo que, propriamente, não faz parte deste mundo, quase como um visitante de outra esfera.


Essa experiência, que é um paradigma do nosso encontro com o sagrado, exige uma espécie de reconhecimento cerimonial da nossa parte. O corpo sem vida é objeto de rituais e de atos de purificação, concebidos não apenas para enviar o seu extinto dono, feliz, para a vida após a morte – pois essas práticas são realizadas mesmo por aqueles que não acreditam em vida após a morte –, mas para superar o espanto e o assombro (atributos sobrenaturais) diante da forma humana morta. O corpo é recuperado por este mundo através de rituais que reconhecem também que ele é uma realidade à parte. Dito de outro modo: os rituais consagram o corpo e, assim, o purificam do seu estado de putrefação. Por esse motivo é que o corpo pode ser profanado – e este é, sem dúvida, um dos principais atos de profanação, ao qual as pessoas se sentiram tentadas desde os tempos imemoriais, como quando Aquiles, triunfante, arrasta o corpo de Heitor ao redor das muralhas de Tróia.


Há outras ocasiões em que a presença de um apelo transcendente também nos arrasta para fora das nossas preocupações cotidianas. Por exemplo, na experiência de estar apaixonado. Também essa experiência é uma necessidade humana universal que nos causa estranhamento. O rosto e o corpo da pessoa amada estão imbuídos de uma vivacidade intensa. Mas, sob um aspecto fundamental, eles são como o corpo de um morto: parecem não pertencer ao mundo empírico. Aquele que é amado olha para quem o ama como Beatriz olhava para Dante: de um patamar que transcende o fluxo das coisas temporais. O objeto de amor exige que o estimemos e que nos aproximemos dele com uma reverência quase ritualística. E através dos olhos, lábios e palavras há uma espécie de plenitude do espírito que tudo renova.


Os poetas gastaram milhares de palavras para descrever essa experiência que palavra alguma parece exprimir totalmente. É uma experiência sustentou o senso do sagrado ao longo dos séculos, e fez com que pessoas tão diferentes, como Platão e Calvino, Virgílio e Baudelaire, se lembrassem de que o desejo sexual não é o simples apetite que observamos nos animais, mas a matéria prima de um desejo que não pode ser satisfeito de modo fácil ou mundano, e que exige de nós – nada mais, nada menos – uma mudança de vida.


BOA PARTE da feiúra que é cultivada em nosso mundo, hoje, remonta às duas experiências que eu assinalei. O corpo nos estertores da morte; o corpo nos estertores do sexo – os dois podem nos fascinar, sem dificuldades. Somos fascinados pela dessacralização da forma humana, quando nos mostram o corpo humano como um mero objeto entre outros, o espírito humano ofuscado e ineficaz, o homem como um ser derrotado por forças externas, e não como um sujeito livre limitado pela lei moral. E a arte dos nossos tempos parece se concentrar sobre este tipo de coisa, oferecendo-nos, não só pornografia sexual, mas uma pornografia da violência, que reduz o ser humano a um pedaço de carne que padece, indefeso, de forma lamentável e repugnante.


Todos nós temos um desejo de escapar das imposições de uma existência responsável, em que tratamos uns aos outros como pessoas dignas de reverência e respeito. Todos nós somos tentados pela ideia da carne e pelo desejo de transformar o ser humano em pura matéria – um autômato que obedece a desejos mecânicos. Para nos render a essa tentação, no entanto, precisamos, primeiro, remover o seu principal obstáculo: a natureza consagrada da forma humana. Precisamos macular as experiências – como as da morte e do sexo – que de outro modo nos conduziriam para longe dessas tentações, em direção de uma vida mais elevada e constituída de sacrifícios. Essa dessacralização consciente prejudica também o amor – é uma tentativa de refazer o mundo como se o amor já não existisse nele. E esta é, sem dúvida, a característica mais importante da cultura pós-moderna: uma cultura sem amor, determinada a retratar o mundo humano como indigno de ser amado. O diretor de teatro moderno que despoja violentamente as obras de Mozart está tentando destruir o amor que está no cerne destas obras, para confirmar a sua visão do mundo como um lugar onde só o prazer e a dor são reais.


Isso nos sugere uma solução simples: resistir à tentação. Em vez de profanar a forma humana, devemos aprender a reverenciá-la. Pois não ganhamos nada, absolutamente, com os insultos lançados sobre a beleza por aqueles que – como Calixto Bieito – não agüentam encará-la de frente. Claro, podemos neutralizar os ideias elevados de Mozart colocando a sua música em segundo plano, de modo que se torne o mero acompanhamento de um carnaval desumano, repleto de sexo e morte. Mas o que apreendemos com isso? O que ganhamos, em termos de crescimento emocional, espiritual, intelectual e moral? Nada, exceto ansiedade. Devíamos apreender uma lição com esse tipo de dessacralização: ao tentar nos mostrar que os nossos ideais humanos não têm valor, ela própria se mostra sem valor. E quando algo se mostra sem valor, é hora de jogá-lo fora.


É CLARO, portanto, que a cultura da transgressão jamais alcança resultado algum, exceto este: a perda da beleza como um valor e um fim. Mas por que a beleza é um valor? Trata-se, aqui, de uma visão antiga segundo a qual a verdade, a bondade e a beleza não podem ser antagônicas, em última análise. Talvez a beleza tenha se degradado em kitsch precisamente porque, no pós-modernismo, perdeu-se a noção de veracidade e, conseqüentemente, de direção moral. Essa é a mensagem que nos transmitem os primeiros modernistas – Eliot, Barber e Stevens – e que precisamos ouvir.


Para oferecer uma resposta satisfatória ao hábito de dessacralização, precisamos descobrir as afirmações e as verdades vitais sem as quais as belezas artísticas não podem ser realizadas. O que não é uma tarefa fácil. Se observarmos os verdadeiros defensores da beleza em nossos tempos – penso em compositores como Henri Dutilleux e Olivier Messiaen, em poetas como Derek Walcott e Charles Tomlinson, em prosadores como Italo Calvino e Aleksandr Solzhenitsyn – impressionamo-nos, de imediato, diante da imensidão do trabalho árduo, do estudo solitário e da atenção aos detalhes que caracterizam seu ofício. Na arte, a beleza tem de ser conquistada, mas o trabalho se torna mais difícil à medida que o puro ruído de dessacralização – ampliado agora pela Internet – abafa a voz silenciosa que murmura no âmago das coisas.


Uma resposta possível é olhar para a beleza em suas formas mais cotidianas – a beleza das ruas residenciais, dos rostos alegres, dos objetos naturais e das paisagens agradáveis. É possível, também, poluir essas coisas, e este é o propósito do artista de segunda categoria ao atrair nossa atenção para esse caminho – a via negativa da dessacralização. Mas é possível, também, retornar aos objetos mais simples como faziam Wallace Stevens e Samuel Barber – mostrando que nos sentimos familiarizados com eles e que eles ampliam e justificam a nossa existência. Esse é um caminho que nos foi aberto pelos primeiros modernistas – a via positiva da beleza. E não há razão alguma para pensar que devamos abandoná-lo.

[1] Ver "The Abdution of Opera", http://www.city-journal.org/html/17_3_urbanities-regietheater.html

O Cientificismo nas Artes e em Humanidades

Outono de 2013

Roger Scruton

Conforme as universidades se expandiam no século XX e as ciências exatas e naturais eram marginalizadas de um sistema educacional cada vez mais relutante em exigir demais dos seus alunos, as humanidades foram sendo transferidas para o centro do currículo. A primeira dentre elas foi o inglês, uma disciplina que só em meados do século firmou seu lugar como diploma nas universidades britânicas, em grande parte como um resultado da tentativa fracassada de I. A. Richards de tratar o estudo da literatura como um ramo da sociologia empírica. A história da arte se desenvolveu junto com o inglês e trouxe consigo a abordagem hegeliana da história desenvolvida nas universidades germânicas. E o crescimento proeminente da filosofia (ainda considerada como um ramo das “ciências morais” durante meus dias de graduação em Cambridge) lançou bases para uma expansão contínua do currículo até áreas bastante diversas, como civilização clássica, análise de filmes e arte da escrita. A expansão simultânea das ciências -- chegando a englobar antropologia (absorvida na arqueologia, em Cambridge, durante minha juventude), sociologia, economia, ciência política e teoria da educação -- mostrou que muitas áreas de estudo se situavam com dificuldade entre as artes e as ciências e exigiam empréstimos de ambas. Tome, como exemplo, os estudos de mídia: era um ramo da sociologia ou uma subseção da crítica literária? Durante os anos 1960 e 1970 surgiu muito rapidamente o hábito de misturar aglomerados de disciplinas das ciências sociais e humanidades para produzir “estudos” que iriam recorrer à admissão cada vez mais irrestrita de alunos, transmitindo uma imagem espúria – e muitas vezes altamente politizada – de relevância.

Na universidade atual, surge a impressão de que, fora do campo das ciências exatas e naturais, qualquer coisa serve; de que as humanidades não têm sequer um método, nem um corpo de conhecimentos recebidos, cabendo ao professor decidir o que vai ensinar em suas aulas. As tentativas ocasionais de estabelecer um cânone de grandes livros são rápida e facilmente derrubadas, enquanto os jornais estão repletos de artigos dedicados ao que Jean Bricmont e Alan Sokal condenaram severamente como “imposturas intelectuais”.

Um problema adicional foi gerado pelo crescimento de escolas de pós-graduação em ciências humanas e sociais. Cada vez mais, os departamentos e os professores universitários são avaliados – para a definição de seu status e para a concessão de verbas – segundo a sua produção de “pesquisas”. O emprego dessa palavra para designar o que antes pôde receber o nome de “estudos” insinua, naturalmente, uma afinidade entre as humanidades e as ciências, dando a entender que as duas estão igualmente empenhadas em descobrir coisas, sejam fatos ou teorias, que seriam acrescentadas ao estoque de conhecimentos humanos. Pressionadas para justificar sua existência, as humanidades, portanto, começam a procurar ciências que lhes forneçam "métodos de pesquisa" e que prometam "resultados". Sugerir que a preocupação fundamental das humanidades é a transmissão de “cultura” – como defenderam alguns seguidores do poeta e crítico do século XIX, Matthew Arnold – seria rebaixá-las a uma posição inferior. Se o que todas as humanidades têm a oferecer é “cultura”, então elas dificilmente podem recorrer ao erário do mesmo modo que as ciências, que estão constantemente acrescentando algo ao nosso estoque de conhecimentos. A cultura não tem métodos, ao passo que a pesquisa procede mediante conjeturas e provas. A cultura significa o passado; a pesquisa significa o futuro.

Ademais, visto que a defesa das humanidades baseia-se na “cultura” que transmitem, elas se tornam vulneráveis à desconstrução. É possível evocar inúmeras teorias – a teoria marxista da “ideologia”, ou alguma teoria feminista, pós-estruturalista ou foucaultiana – para defender a opinião de que o status das preciosas conquistas da nossa cultura se deve tão somente ao poder que se manifesta através delas, e que não possuem, portanto, mérito intrínseco algum. Dessa maneira, toda concepção da cultura como uma esfera autônoma do conhecimento moral, que demanda aprendizado, estudo e imersão, a fim de seja elevada e absorvida, é lançada aos ventos. Sob esse ponto de vista, as universidades existem, não para transmitir cultura, mas para desconstruí-la, para remover sua aura de respeitabilidade. O objetivo da universidade é transmitir ao aluno, depois de três ou quatro anos de dispersão inquietante, a opinião de que vale tudo e nada importa.

Invadindo as Humanidades

Parece que, hoje, chegamos ao ponto em que as humanidades se transformaram – ou quase isso. Podemos observar tentativas crescentes de retificar os problemas das humanidades absorvendo o seu tema em uma ou outra ciência.

Tome, por exemplo, a história da arte. Gerações de estudantes foram atraídas para esse assunto na esperança de adquirir conhecimentos sobre as obras primas do passado. A história da arte foi desenvolvida nas universidades alemãs do século XIX, sob a influência dos historiadores Jacob Burkhardt, Heinrich Wölfflin e outros, e se tornou um paradigma para o estudo do assunto em humanidades. A teoria hegeliana do Zeitgeist, colocada em uso de modo astuto por Wölfflin, dividiu tudo em períodos nitidamente circunscritos – Renascença, Barroco, Rococó, neoclássico, e assim por diante. E o método “comparativo”, em que as imagens eram mostradas lado a lado e suas diferenças atribuídas às distintas estruturas mentais dos seus autores, mostrou-se infinitamente fértil para a crítica. Observe as obras de Wittkower, Panofsky, Gombrich, e outros produtos dessa escola de pensamento (muitos dos quais fugiram para se safar da destruição nazista das universidades alemãs), e você concluirá, seguramente, que jamais houve acréscimo mais criativo e valoroso para o currículo nos tempos modernos.

Os estudiosos, porém, não ficam satisfeitos. Haveria ainda alguma “pesquisa” a ser realizada sobre a arte de Michelangelo ou a arquitetura de Palladio? Haveria algo a ser acrescentado ao estudo das catedrais góticas depois de Ruskin, Von Simson, Pevsner e Sedlmayr? E como é que vamos enfrentar a acusação de que esse assunto inteiro está concentrado nas mãos de alguns homens brancos europeus, já falecidos, que falaram claramente para seus tempos, mas que não têm grande relevância para os nossos? Em suma, como conseqüência de seu próprio sucesso, o tema da história da arte foi jogado para escanteio dentro da academia, sem recursos e sem alunos de graduação – exceto, é claro, se puder gerar um novo campo de "pesquisas".

Problemas similares têm atormentado a musicologia e os estudos literários. E, nos dois casos, surge a tentação de procurar um ramo das ciências naturais que pudesse ser aplicado ao tema em questão, de modo a resgatá-lo da sua esterilidade metodológica. Duas ciências em particular parecem dar conta do recado: a psicologia evolucionista e a neurociência. Ambas tratam da mente humana, e uma vez que a cultura é um âmbito da mente, essas duas ciências seriam capazes de lhe conferir algum significado. A psicologia evolucionista trata os estados mentais como adaptações e explica-os em termos de vantagens reprodutivas que tais adaptações propiciaram aos nossos antepassados; a neurociência explica os estados mentais como aspectos do sistema nervoso, sob o prisma da sua função cognitiva.

Ao longo das últimas décadas, portanto, temos assistido a uma invasão constante da metodologia científica nas humanidades. Essa invasão ilustra muito bem a distinção entre as formas de pensamento científicas e cientificistas. O verdadeiro cientista tem uma questão clara, um corpo de dados e uma resposta teórica (à questão) que pode ser contrastada com esses dados. O cientificista toma de empréstimo o aparato da ciência, não para explicar o fenômeno que está diante dele, mas para criar uma aparência de questão científica, uma aparência de dados e uma aparência de método que nos conduziria a uma resposta.

O estruturalismo na crítica literária, como exemplificado por Roland Barthes em seu livro de 1970, “S/Z”, era cientificista, neste sentido. Esse estruturalismo levantou questões que tinham aparência científica, e as abordou com teorias que não poderiam ser refutadas por conta das suas previsões equivocadas. A estranha análise de Barthes sobre o conto “Sarrasine” de Balzac, em que ele se debruça sobre as tecnicalidades da lingüística de Saussure, criou certa agitação naquela altura e foi imediatamente adotada por críticos literários ávidos para encontrar um "método" que entregaria resultados. Os resultados nunca chegaram, e esse episódio em particular está agora mais ou menos esquecido.

Um caso similar pode ser encontrado hoje na nova “ciência” da “neuroestética”, introduzida e promovida por V. S. Ramachandran, Semir Zeki e William Hirstein, que se comprometeram a produzir seu próprio jornal e já têm uma pilha crescente de publicações dedicadas aos resultados desse empreendimento. E o historiador da arte John Onians seguiu o exemplo, tentando reformular sua disciplina como uma ciência da Neuro-história-da-arte (título do seu livro publicado em 2008).

Ao longo dos séculos filósofos e críticos têm se perguntado sobre o sentido da arte, por que ela é tão especial, e por que nos afeta dessa maneira. Suas especulações são sutis, difíceis, e atentam para cada ponto do significado humano do tema – o que a obra de arte expressa para nós, quem a interpreta e quem a assimila realmente. Essa significação humana é um fenômeno cultural – o tipo de objeto para o qual existem os estudos de humanidades. Assim, o primeiro passo de Ramachandran e Hirstern, na publicação em que explicam sua teoria, em 1999, foi apresentar a arte como já revestida da ciência que tencionavam aplicar:

"O propósito da arte, sem dúvida, não é apenas descrever ou representar a realidade – o que pode ser feito por uma simples câmera – mas elevar, transcender ou até mesmo distorce-la... O que o artista tenta fazer (quer consciente ou inconscientemente) é não apenas captar a essência de algo, mas ampliá-lo, para ativar de modo mais intenso os mesmos mecanismos neurais que seriam ativados pelo objeto original."

Tendo reduzido o efeito da arte a uma distorção perceptiva e tendo deslumbrado o leitor com uma referência aos "mecanismos neurais", Remachandran e Hirstein invocam, então, um princípio psicológico – o efeito "peak shift", de acordo com o qual um animal que tenha aprendido a reagir a um estímulo responde mais fortemente à exageração desse estimulo – para fornecer uma explicação geral "do que a arte realmente trata". A essas teorias simplificadoras e mal aplicadas se seguiu uma confusão que foi explorada e ampliada pelo professor de filosofia e estética britânico John Hyman. Em seu artigo de 2010 ‘Arte e Neurociência’, Hyman mostra que os neuro-esteticistas não compreenderam o efeito peak shift, que eles são lamentavelmente ignorantes em relação à arte, e que suas teorias, na verdade, não têm nada a dizer sobre a distinção entre a arte e a não-arte. Para os fins da presente análise, é também digno de nota o modo como a ciência entra na descrição que Ramachandran faz do assunto. Em vez de uma tentativa cuidadosa e circunspecta de definir um problema, ele oferece uma descrição superficial de alguns fenômenos artísticos, alude gratuitamente a uma explicação que lhe é predileta ("mecanismos neurais") e apresenta uma antecipação do resultado de sua aplicação. Eis a marca inconfundível do cientificismo – a ciência antecede a questão, e a redefine como um problema que pode ser solucionado por meios científicos. Mas as dificuldades na compreensão da arte surgem precisamente porque as questões sobre sua natureza e seu significado não exigem uma explicação, mas uma descrição.

Ciência e Subjetividade

Por que devem existir questões como essas, e por que elas estão para além do domínio das ciências empíricas? A resposta mais simples é que elas são questões que dizem respeito ao espírito (Geist) e, portanto, a fenômenos que estão fora do alcance dos métodos experimentais. Mas essa não é uma resposta que deixaria as pessoas satisfeitas, hoje; colocar a questão dessa maneira suscitaria, provavelmente, um sorriso cético e irônico. O “espírito” desapareceu quando Kant demoliu a teoria cartesiana do sujeito. Se não desapareceu, como a noção de espírito sobreviveria aos avanços da ciência cognitiva, da genética e da psicologia evolutiva, que aboliram as ilusões com base nas quais a religião dominava o nosso mundo? Pode-se dizer que tudo o que Ramachandran e companhia estão fazendo é substituir a linguagem vaga, em que a disputa entre a ciência e o Geisteswissenschaften (“estudo da mente ou do espírito”, um termo de certo modo mais apropriado do que “artes liberais”) foi formulada originariamente, por algo que estaria mais de acordo com a visão moderna do que somos. O problema é que não há consenso algum sobre a “visão moderna do que somos”, em grande parte porque a relação entre “nós” e “eu” é incerta, sendo incerto, também, o lugar que o individuo autoconsciente ocupa na ciência das espécies.

Enquanto sujeito consciente, eu tenho um ponto de vista sobre o mundo. O mundo aparece para mim de determinado modo, e esse “aparecimento” define a minha perspectiva individual. Cada ser autoconsciente tem, então, uma perspectiva que lhe é própria; é isso o que significa ser um sujeito e não um objeto. Quando eu ofereço uma explicação cientifica do mundo, porém, eu descrevo apenas objetos. Eu descrevo o modo como as coisas são e as leis causais que explicariam tal forma de existência. Essa descrição não é elaborada desde uma perspectiva particular. Ela não contém palavras como “aqui”, “agora” e “eu”; e embora se destine a explicar o modo como as coisas aparecem, ela é apresentada como uma teoria de como as coisas são. Em suma, a subjetividade é, em princípio, inobservável para a ciência – não porque exista em outro domínio da realidade, mas porque não faz parte do mundo empírico. Ela encontra-se no limiar das coisas, como um horizonte, e não pode ser compreendida "desde outro lado", o lado da própria subjetividade.

A subjetividade faz parte do mundo real? Em certo sentido, não. Pois eu jamais a encontrarei no mundo dos objetos. Mas, sem a minha natureza subjetiva, nada é real para mim. Se eu me importo com mundo, então eu devo ser o primeiro a ter interesse pela subjetividade, sem a qual não haveria qualquer perspectiva desde a qual eu pudesse vê-lo, e não seria possível sequer falar de um mundo, na verdade. Essa atenção dirigida à subjetividade é o propósito da arte, ou pelo menos da arte que importa. E é uma das razões pelas quais os estudos de humanidades, que tomam a arte e a cultura como seu objeto, jamais poderão ser reduzidos às ciências naturais.

A compreensão humana se dá através de atitudes que Martin Buber resumia como as relações entre Ich e Du (Eu e Tu), mas que talvez fossem mais bem descritas como relações entre eu e eu. Enxergamos uns aos outros de eu para eu, e dessa relação surge todo o julgamento, toda a responsabilidade, toda a vergonha, o orgulho e a realização. Esse fato importante sobre a condição humana pode ser resumido na palavra que nos foi legada pelo direito romano e que foi retomada por Boécio e S. Tomás de Aquino: “pessoa”. Somos pessoas, e a personalidade é a nossa essência.

Existem alguns conceitos que brotam naturalmente da noção de personalidade e que exercem um papel ordenador em nossa experiência – conceitos como ornamento, melodia, dever e liberdade – mas que não pertencem a nenhuma teoria científica, porque enquadram a realidade de uma maneira que ciência natural alguma jamais aceitaria. A ciência pode nos dizer muito sobre a seqüência ordenada de sons; mas ela não nos diz nada sobre as melodias. Uma melodia não é um objeto acústico, e sim musical. E os objetos musicais pertencem a um domínio puramente intencional: eles tratam de outra coisa; estão imbuídos de significado e são sons na medida em que nós, seres autoconscientes, os experimentamos enquanto tais. O conceito de pessoa é como o de uma melodia. Ele se mostra na nossa forma de percepção e no modo como nos relacionamos uns com os outros, mas ele não pode ser “transportado” para dentro do campo de determinada ciência que investigue o homem. O fato de que a pessoa não possa ser transportada para dentro de uma ciência não significa que não existam pessoas, e sim, apenas, que uma teoria científica, ao classificá-la, a colocaria ao lado de outros objetos – por exemplo, dos macacos ou outros mamíferos.

Em outras palavras, a realidade do homem é definida por uma noção que não pertence à ciência da natureza humana. A ciência nos vê como objetos e não como sujeitos, e as descrições que ela oferece acerca de nossos comportamentos não são descrições do que nós sentimos. Quando nos falamos sobre a alma, geralmente não nos referimos a alguma substância cartesiana pairando no interior de algum lugar. Referimos ao princípio ordenador da consciência em primeira-pessoa: às capacidades de auto-atribuição, de auto-conhecimento e de relações intersubjetivas que parecem nos distinguir de todas as outras espécies e que fazem com que a vida humana seja digna de ser vivida. Esse princípio ordenador é o que Aristóteles e S. Tomás de Aquino expressavam ao descrever a alma como a forma do homem, e o corpo como sua matéria; tudo o que eu teria a acrescentar a essa descrição seria uma definição do conceito de forma em termos de ordenação que se revela na primeira pessoa do singular – ou seja, no sentido de uma pessoa em particular.

O nosso comportamento se fundamenta sobre a convicção que temos na liberdade, na individualidade, e na compreensão de que eu sou eu, de que você é você, e de que cada um de nós é um centro de pensamentos e ações livre e responsável. Além dessas convicções, existe todo o mundo dos vínculos interpessoais, e é a partir das relações mútuas que formulamos conceito acerca do que nós somos. Conseqüentemente, parece que temos uma necessidade existencial de elucidar os conceitos de eu, de escolha livre, de responsabilidade e tudo o mais, se queremos tornar mais nítido o nosso auto-conhecimento – para o que nem todas as neurociências do mundo nos ajudariam. Nós vivemos na superfície, e o que nos importa não são os sistemas nervosos invisíveis que explicariam como as pessoas funcionam, mas as aparências visíveis com as quais nos relacionamos, quando vemos os outros enquanto pessoas. O que nós interpretamos são essas aparências; e em cima dessas interpretações criamos respostas que, por sua vez, serão interpretadas; e assim por diante. E porque a cultura é construída sobre essas relações interpessoais e intersubjetivas é que ela é um domínio diferenciado da investigação humana, que não pode ser substituído por uma ciência natural.

Do que tratam as pinturas


Isso nos traz de volta à história da arte e ao estudo da pintura. O que são as pinturas - cientificamente falando, seu significado se revela em contraste com o quê? É bastante óbvio que a famosa pintura de Ticiano, Venus de Urbino (1538), consiste numa tela onde estão distribuídos alguns pigmentos (ver abaixo). Poderíamos descrever essa distribuição usando coordenadas geométricas em espaço bidimensional, e então digitalizar a pintura de Ticiano para que uma máquina a pudesse reproduzir. Essa forma digital não faz menção alguma à mulher, à criada, ou aos olhos que nos desafiam e à mão que se esconde. No entanto, ela contém todas as informações necessárias para reproduzir a imagem, naqueles aspectos que são visíveis para quem tenha a capacidade de compreender uma foto. Podemos mesmo conceber animais que fossem capazes de reconhecer a distribuição de pixels, de reagir seletivamente a cada diferença entre os padrões de pigmentos, mas que não poderiam enxergá-la como nós: enquanto pintura. E, claro, estamos familiarizados com programas digitais que gravam, transmitem e apresentam imagens quadriculadas em máquinas que não enxergam nada, absolutamente.
Venus de Urbino, Ticiano (1538)

A resposta mais simples a este tipo de exemplo é dizer que as imagens são traços que emergem dos objetos físicos em que estão contidos. A pintura da jovem dama de Urbino não é algo que está para além do arranjo de cores que vemos, mas também não pode ser reduzida a esse mero arranjo: mesmo que a distribuição correta de pigmentos possa reproduzi-la, a imagem é um aspecto da pintura que aparece para aqueles que têm a capacidade imaginativa requerida para percebê-la. Na verdade, alguém pode ser um especialista em produzir copias de Venus de Urbino e, ao mesmo tempo, estar cego em relação ao seu próprio objeto, vendo-o apenas como uma distribuição de pigmentos na tela.

É certo que há muito a ser dito sobre a pintura de Ticiano em termos de disposição de pigmentos numa matriz bidimensional. Mas nada do que seja dito a este respeito equivalerá a uma interpretação da pintura, nem nos dirá algo acerca de seu significado ou de seu valor. Pois ignoraria o fato mais importante sobre a pintura: o de que ela trata. A expressão “de que se trata” é digna de atenção: é a mesma que faz com que surja todo tipo de dificuldades na compreensão de estados de espírito que outrora foram vistos como obstáculos intransponíveis à simples análise física da mente. As pinturas têm intencionalidade tal como as convicções e os desejos. E elas podem ser comparadas, neste tocante, não apenas com outras pinturas, mas com obras literárias e musicais. Se a pintura de Ticiano deve ser entendida como a expressão de sexualidade doméstica ou nupcial, ou se a senhorita deve ser vista mais como uma cortesã do que uma esposa: eis uma questão de interpretação. Podemos comparar a pintura de Ticiano com outra que se refere a ela explicitamente, como a famosa Olímpia, de Manet (1863, ver abaixo), em que o comércio de rua grosseiro é colocado em relação irônica com o acolhimento suave e macio da Veneza Renascentista. As interpretações começam quando emitimos esses juízos comparativos, e é difícil conceber como a neurociência poderia contribuir para o desempenho da análise. Podemos compreender as pinturas descobrindo o seu significado, avaliando o lugar que esse significado ocupa na vida de quem o observa e o que transmitem sobre a condição humana. Você provavelmente terá um insight da pintura de Manet se você compará-la com dois romances: Safo (1884), de Aphonse Daudet e Nana (1880), de Émile Zola. E você compreenderá melhor o que Manet está dizendo se você ver o mundo de Ticiano refletido ironicamente nas formas e adereços de uma boulevardienne.
Édouard Manet, Olympia (1863)
Musée d’Orsay, Paris

A crítica da arte dispõe de uma disciplina que envolve raciocínios e juízos. Ela não é uma ciência e o objeto que ela descreve não faz parte do mundo físico, onde não há Olympia ou qualquer outra coisa que percebamos na pintura de Manet. Contudo, pensar que, por esse motivo, a crítica da arte seja deficiente e deva ser substituída pelo estudo de pigmentos, seria, sem dúvida, um erro. Existem formas de conhecimento humano que não podem ser reduzidas nem aprimoradas pela ciência.

É aqui que os neuro-charlatães intervêm, para declarar que, claro, a ciência dos pixels não explicará as pinturas, já que elas estão nos olhos de quem vê. Mas, dizem, existe também algo chamado ressonância magnética do observador, a qual encerra o segredo da imagem no quadro. Se, pois, compreender uma pintura é observá-la de certa maneira – de maneira a captar seu aspecto visual e o significado que esse aspecto tem para seres como nós – então devíamos, antes, examinar as cadeias de reações neurais envolvidas na captação desse aspecto e as conexões que ligariam tais cadeias ao juízo de significado.  

Mas o quê, exatamente, um estudo como esse nos mostraria? Suponha que tivéssemos decifrado perfeitamente as seqüências de reações neurais implicadas na visão de um objeto estabilizado na mente do observador. Não se trata, aqui, de um juízo crítico, e embora nos permita prever que o observador normal, quando confrontado com a pintura de Ticiano, verá uma mulher nua deitada em um sofá olhando para ele, isso não diria nada em resposta à seguinte crítica: Sim, mas isso não é tudo que está lá, e, na verdade, você deve notar que essa mulher não está completamente nua, mas sem roupas, e que seu corpo, como Anne Hollander demonstra de modo tão convincente em  Seeing Through Clothes, tem a textura e o movimento das roupas que ela tirou; que aqueles olhos não olham para você, mas através de você, sonhando com alguém que não é você. Os críticos não nos dizem como nós vemos as coisas quando lançamos mãos de nossos meios usuais interpretativos, e sim como devíamos vê-las; suas explicações sobre o significado de uma pintura são também uma recomendação, que acatamos por nossa própria liberdade de escolha. A neurociência, portanto, permanece uma ciência, apenas: não pode elevar-se ao nível da compreensão intencional, onde o significado é criado pelos nossos próprios atos voluntários. Desse modo, não devemos nos surpreender diante da repetição enfadonha da neuroestética e de sua inabilidade em lançar luz sobre a natureza ou o significado das obras de arte.

Assim como há um discernimento da arte, que constitui o terreno da crítica e que é um exercício racional dotado dos seus próprios padrões de validade, há também um discernimento da vida humana, que constitui o terreno das relações interpessoais e que é um exercício racional submetido às suas próprias regras. E assim como é um erro pensar que a crítica da arte pode ser substituída pela neurociência que supostamente explicaria a experiência artística, também é um erro pensar que o entendimento interpessoal possa ser substituído pela neurociência que supostamente explicaria o nosso comportamento. Essa substituição demandaria descrições do comportamento humano que o separaria do contexto que lhe confere sentido; exigiria que tornássemos reducionistas, indivíduos não conseguem notar que os aspectos mais importantes da condição humana emergem da realidade, que estes aspectos existem na superfície do mundo e são invisíveis àqueles cujos olhos estão fixados nas profundezas.

A ilusão do meme

As culturas são reflexões que o ser humano realiza na (e sobre a) superfície da vida, formas pelas quais nós compreendemos o mundo das pessoas e a estrutura moral dentro da qual vivem. Mas essa ideia elevada da cultura tem sofrido, nas últimas décadas, outro ataque cientificista, desta vez de Richard Dawkins e seu conceito do "meme", explicitado pela primeira vez em O Gene Egoísta (1976). Dawkins sugere que a seleção natural poderia explicar todos os problemas apresentados pela cultura humana, desde que a enxerguemos como algo que evolui de acordo com os mesmos princípios darwinianos que dirigem a evolução biológica. Assim como todo organismo é uma "máquina de sobrevivência" que existe para fornecer genes que se auto-propagam, os seres humanos também são "máquinas de sobrevivência" que existem para fornecer "memes" que se auto-propagam – entidades mentais que usam as energias do cérebro humano para se multiplicar, da mesma maneira que um vírus usa as energias das células. Como os genes, os memes precisam de um lugar para se alojar, e o seu sucesso depende de encontrar o nicho ecológico que lhe permitirá gerar mais exemplares de sua espécie. E esse nicho é o cérebro humano.

O meme é uma entidade cultural que se auto-propaga e que, alojando-se num ser humano, usa seu cérebro para multiplicar-se – como uma melodia cativante se reproduz em zumbidos e assobios, espalhando-se como uma epidemia se espalha numa comunidade humana, como ‘La donna è mobile’ na manhã seguinte da primeira execução de Rigoletto, de Verdi. Dawkins sustenta que as ideias, as crenças e as atitudes são formas conscientes às quais essas entidades auto-reprodutoras aderem, e que se auto-propagam como doenças se auto-propagam – usando a energia de quem elas habitam. "Assim como os genes se propagam em fundos genéticos saltando de corpo em corpo por meio de espermatozoides e óvulos, os memes se propagam em fundos meméticos saltando de cérebro em cérebro por meio de um processo que, em sentido amplo, pode ser chamado imitação". Daniel Dennet, em livros como A Liberdade Evolui (2003) e Quebrando o Encanto: A Religião como um Fenômeno Natural (2006) acrescenta que esse processo pode ser prejudicial ou benéfico para quem abriga o meme – este pode ser parasita ou simbiótico.

A teoria do "meme" ameaça desacreditar todo o domínio da alta cultura, transformando-a em algo que sobrevive no – e, por assim dizer, pelos próprios esforços do – cérebro humano, em algo que não tem mais significado intrínseco do que qualquer outra rede de adaptações. Para fazer com que a teoria seja remotamente plausível, entretanto, Dawkins tem de distinguir os memes que pertencem à ciência daqueles que são meramente "culturais". Os memes científicos são submetidos a um policiamento adequado pelos cérebros que os abrigam, os quais aceitam as ideias e as teorias apenas como parte do próprio método da ciência direcionado à verdade. Os simples memes culturais estão fora do alcance da inferência científica e podem gerar distúrbios e causar todo o tipo de desordem cognitiva e emocional. Não são submetidos a nenhuma disciplina externa, como aquela subentendida no conceito de verdade, mas seguem seu próprio caminho de reprodução, indiferentes aos objetivos do organismo que invadiram.

A ideia do meme pode parecer atraente no plano metafórico, mas a que corresponderia, na realidade? Do ponto de vista da memética, as ideias absurdas nascem do mesmo modo que as teorias verdadeiras, e o assentimento é uma honra retroativa concedida àquelas que conseguiram se reproduzir. A única distinção importante que resta a ser feita, ao levar em conta esse processo, é entre os memes que melhoram a vida de seus anfitriões e os memes que querem destruir ou parasitar essa vida.

Uma das características que distinguem o ser humano, porém, é que ele tem a capacidade de distinguir entre conceito e realidade, de admitir e cogitar hipóteses com as quais não concorda, e de, então, transferir seu julgamento para o terreno das ideias, chamando cada uma para o tribunal do argumento racional, aceitando-as e rejeitando-as, independentemente do seu poder de auto-propagação. E não é apenas na ciência que esta atitude de reflexão crítica é sustentada. Mathew Arnold, em sua coleção clássica de ensaios Cultura e Anarquia (1869), descreveu a cultura como "a busca da nossa perfeição total mediante a tentativa de conhecer o melhor possível o que foi dito ou pensado no mundo, em todas as questões que nos dizem respeito, e, através desse conhecimento, transformar uma corrente de pensamento vigorosa e livre em noções de valores e hábitos".

Como tantas pessoas que se apegaram a uma visão da ciência originada no século XVIII, que prometia apresentar explicações científicas para os fenômenos culturais e sociais, Dawkins se esquece da resposta que lhe foi oferecida na época: Espere um pouco; a ciência não é a única maneira de buscar conhecimento. Há também o conhecimento moral, que é o domínio da razão prática. Há o conhecimento emocional, que é o domínio da arte, da literatura e da música. E, possivelmente, há o conhecimento da transcendência, que é o domínio da religião. Por que privilegiar a ciência? Só porque ela se propõe a explicar o mundo? Por que não dar importância às disciplinas que interpretam o mundo e nos ajudam a encará-lo como algo familiar?

Essa resposta não perdeu nada do seu apelo. E ela indica uma fraqueza fundamental da "memética". Mesmo que existam unidades de informações meméticas propagadas de cérebro para cérebro, não são essas unidades que temos em mente quando pensamos conscientemente. Os memes estão para as ideias como os genes estão para os organismos: se eles existem em todos nós (e Dawkins, ou qualquer outro, não forneceu qualquer prova a respeito), então sua reprodução incessante e despropositada não tem interesse algum para a cultura. As ideias, ao contrário, fazem parte de um encadeamento consciente da reflexão crítica. Nós as avaliamos segundo sua verdade, sua validade, seu decoro moral, sua elegância, sua completude e sua graça. Nós as acatamos e as descartamos, às vezes no curso de nossa busca por verdade e explicação, às vezes em nossa busca por significado e valor. E ambas as atividades são essenciais para nós. Embora a cultura não seja ciência, ela também é uma atividade do espírito crítico. A cultura – tanto a cultura elevada da arte e da música, quanto a cultura mais ampla incorporada numa tradição religiosa e moral – classifica as ideias de acordo com qualidades intrínsecas, e permite que nos sintamos em casa no mundo, fazendo ressoar em nós a sua significação pessoal.

É verdade que a teoria do meme não nega o papel da cultura, nem prejudica a visão do século XVIII de que a cultura, se bem compreendida, é, da mesma maneira que a ciência, uma atividade racional do espírito. Mas o conceito de meme pertence a outros conceitos subversivos – à "ideologia" de Marx, ao inconsciente de Freud, ao "discurso" de Foucault – que estão caindo em descrédito no preconceito comum. Essa teoria procura expor as nossas ilusões e explicar os nossos sonhos. Mas o meme em si mesmo é um sonho, é parte de uma ideologia e é acatado, não por sua verdade, e sim pelo poder ilusório que confere àquele que enfeitiça. A teoria do meme produziu alguns argumentos interessantes, pelo menos aqueles formulados por Daniel Dennet em Breaking the Spell, para explicar a religião como um meme particularmente bem sucedido, embora perigoso.

Mas o memetismo padece do próprio defeito que pretende remediar: ele é um feitiço com que a mente científica procura encantar as coisas que representam uma ameaça para ela – e essa é a forma como devemos ver o cientificismo em geral. O cientificismo envolve o uso de formas e categorias científicas a fim de dar uma aparência científica a maneiras de pensar que não são científicas. Ele é uma forma de magia, uma tentativa de reformular a questão complexa da vida humana sob o comando do mágico, num formato sobre o qual ele possa ter controle. O cientificismo é uma tentativa de subjugar o que ele não compreende.

Sem dúvida, o ser humano pode fazer mais do que isso – por meio da busca da verdadeira explicação científica, por um lado, e por meio do estudo da alta cultura, por outro. Uma cultura não abrange somente obras de arte, nem se destina exclusivamente a interesses estéticos. Ela é a esfera dos artefatos que são de interesse intrínseco, que estão ligados, pela faculdade do juízo, com nossas aspirações e ideais. Apreciamos obras de arte, argumentos, obras de história e de literatura, bons costumes, roupas, piadas e formas de comportamento. Mas, quando o fazemos, que tipo de juízo emitimos, e para onde esse juízo nos conduz?

É de minha convicção que, enquanto firmada na perspectiva de “eu” que é a raiz da condição humana, a cultura se dirige sempre para a transcendência: o ponto no limiar do espaço e do tempo, que é a subjetividade mesma do mundo. E quando perdemos o senso dessa realidade e de sua vigilância eterna e tranquila, toda a vida humana é lançada às sombras. Chegamos ao ponto em que mesmo A Paixão segundo São Matheus e Piedade de Rondanini não nos dizem nada a mais do que um tubarão em formol. Tal é a direção que tomamos. Mas é uma direção deslizante, uma recusa de adotar a postura que é inerente à condição humana: o esforço de enxergar os acontecimentos desde o outro lado e na sua totalidade, como eles se afiguram aos olhos de Deus.